quinta-feira, dezembro 27, 2007

Desejos lúdicos para 2008


Em dezembro de 2006, eu escrevi meus desejos para o ano seguinte, mencionei cócegas nos hipopótamos, saias indianas e crianças que brincassem de pique-esconde num turbilhão de cores esvoaçantes. As pessoas sorririam nas janelas e as roupas recenderiam livremente a amaciante. De fato 2007 foi um ano cheio de energia solar, nada foi proibido, (quase) tudo foi permitido e eu voltei a ter cócegas em lugares improváveis (sempre tive, mas agora apareceu quem se dispusesse a fazê-las).

2008 será como uma tarde de dezembro, ou um amanhecer de verão, tanto faz. As pessoas sairão às ruas para fotografar os lírios e a grama recém-nascida, a luz será sempre inclinada, chegando aos olhos como um ruído singelo, ou uma brisa fresca, para que todos possam desfrutar dela, mesmo cegos ou surdos. As cores serão mais cores, e o desfrute de uma vida colorida e vibrante será sentido intensamente até por aqueles que enxergam em preto-e-branco, ou então confundem verde com tons pastéis. Nada de momentos sépia no ano que se aproxima, a não ser em casos de homenagens sinceras, com lágrimas a lhes embaçarem as vistas e a tristeza bem-vinda das ocasiões felizes.

Façam guerras de almofadas, espirrem à vontade e cheirem ruidosamente os cabelos uns dos outros; sejam mais selvagens e instantâneos, mais espontâneos e menos perfeccionistas, não perturbem os animais!!!, escutem músicas, sorriam muito, defendam alguma causa, abandonem suas terceiras-pernas, amém.


sexta-feira, dezembro 14, 2007

Espelho meu

Vem com roupa apertada e luvas de pelica, e uma expressão pretensamente sensual na cara dura, andando de lado, e avança. Respira lentamente, canta com a língua entre os lábios. Ergue a sobrancelha de leve, faz cara de arrogante, mas por dentro você é fraco, João. Tenta ser adorável, mas recebe pitacos espinhosos de volta, e depois mais um tapa, e outro, e outro. Mas não desiste. Você é que não sabe fazer direito, João. Põe o rosto de lado e sorri, exibe as bochechas limpas, mas beleza não é nada, nem pureza nos olhos, nem perfumes no braço, nem porra nenhuma. Esconde o choro, chorar é feio, chorar não pode, homem não chora, nem mulher, nem cão. Não desiste, João, mesmo que o queira muito, mas esquece, deixa pra lá. Encara o mundo hostil, não abaixa o queixo, continua firme, tenta. Endurece mais ainda, encara mais, crispa os lábios em desprezo, e vai embora. Olha o espelho, João. "Espelho, espelho meu, existe alguém mais atordoado do que eu?"

sábado, dezembro 01, 2007

Um mundo de homens e cães








Jane Rosenclent* aparece e logo indica as próprias vestes: "Desculpa aí, mas é que cuidar de cachorro...", lamenta-se, na voz rasgada pelo cigarro. Enérgica e desinibida, ela dispara palavrões à vontade. Quando recebe o tratamento de "senhora", diz que "senhora é a sua avó". Cumprimenta com satisfação as duas voluntárias que acabaram de chegar. Vera e Luzia Cavalcante, irmãs, voluntariam na Sociedade Humanitária Brasileira, uma ONG fundada em 1998 para cuidar de cães e gatos de rua. Trata-se, geralmente, de animais muito doentes, que vivem aos dissabores da própria sorte, ou animais que sofrem maus tratos dos donos. Quando descobertos pela organização, os animais são imediatamente levados a uma clínica, tratados, vacinados e limpos, e, depois, ficam disponíveis para adoção no abrigo central, em um terreno que fica a 30 km de Brasília, para os lados de São Sebastião. Para lá vão apenas os animais em estado mais grave, que ficam aos cuidados de Jane, dos caseiros e dos voluntários, que revezam as visitas ao local. Hoje, a organização é mantida arduamente pelo trabalho dedicado de seis voluntários, doações de rações, contribuições mensais de sócios e venda de produtos em eventos, além da parceria com veterinários. Parece muito, mas não é: principalmente em fim de ano, a organização sofre com sócios que viajam, param de contribuir e diminuem as arrecadações.


Visivelmente atordoada pela quantidade de trabalho, Jane enumera as tarefas que tem de fazer quase diariamente. Ela e os caseiros acordam cedíssimo, em torno de 5h da manhã, para limpar os canis, distribuídos pelo terreno acidentado e cheio de árvores. Depois, os cães são alimentados e recebem banho; quando necessário, são vacinados e vermifugados. O mesmo processo acontece com os gatos, que ficam na casa de Jane. Ao enumerar os trabalhos, ela se lembra das ocasiões em que um simples relapso pode causar a maior balbúrdia, como quando esqueceu o portão aberto, deixando entrarem cães da vizinhança. "Era no meio da madrugada", lembra, "e eu não ia acordar os caseiros. Se eles quisessem acordar, que acordassem. Foi a maior confusão, todos os meus cachorros correndo pra lá e pra cá, latindo e brigando uns com os outros". Ela também recorda a vez em que dois tatus, que moram ali perto, saíram de suas tocas à noite e invadiram o abrigo. "Aí, bicho, vou te contar: é foda. Vamos deixar bem no popular? É foda".


Naquela tarde de sábado, Vera (aposentada) e Luzia (funcionária do STJ, em Brasília), as voluntárias, trouxeram no carro duas cadelas. De raça indefinida ("poodle com qualquer coisa", arriscou Luzia), mas muito parecidas com shih-tzus ou lhasa apso, as cachorrinhas percorreram alegremente todo o terreno. Depois da morte do dono, passaram para a posse de uma mulher que as maltratava, deixando-as trancadas em um quarto e negando-lhes cuidados básicos, como ração, banho e vacina. Foram encontradas na Ceilândia, e as voluntárias só puderam localizá-las por causa de uma denúncia. Vera assinala que o cômodo das cadelas estava repleto de carrapatos. Na clínica, constatou-se que elas sofriam de anemia e que precisavam de um banho urgentemente (neste momento, Vera franze o nariz e lembra que estavam muito "fedidas"). Por se tratar de mãe e filhote, é preferível que sejam adotadas juntas. Depois de lacrimejar emocionadamente, vendo a felicidade das cadelas com o novo lar, Vera muniu-se dos pacotes de coloridíssimos biscoitos caninos e foi alimentar os cães. As cadelas ficaram à espera de água. Quando questionada sobre o nome das duas, Luzia, mancando por causa da perna engessada, responde que não sabe, mas que não darão outros nomes. "Elas já têm um nome, eu não vou dar outro. A gente vai descobrir os nomes de algum jeito, mas outros a gente não vai dar".


Os cães à espera de doação são distribuídos por tamanho dentro dos canis, que comportam no máximo três animais. Latem energicamente com a aproximação de qualquer pessoa, mas alguns são mais comportados. Nas portas dos canis, uma plaquinha indica o nome dos cachorros que estão lá dentro. Átila, o cão de guarda do abrigo, muito semelhante a um enorme fila marrom, mas com algumas nuances de labrador, é o que late mais alto, incessantemente. "Este não é para adoção", assegura Jane. Ao andar em direção aos canis mais próximos de sua casa, ela comenta o caso de Rose, uma cadela de raça indefinida, encontrada numa praça de Taguatinga. Acabara de dar à luz sete filhotes, que ainda não foram nomeados. Os caseiros observam que Rose é uma mãe ciumenta. Pelo jeito, ela terá de abandonar o ciúme, porque os filhotes, famintos e brincalhões, designam uma esperteza ímpar que os torna absolutamente atraentes. Quando soltos, brincam com vontade e dão mordidelas gentis uns nos outros, latem para os pés dos visitantes etc. Luzia empolga-se e comenta que são "muito lindos". Jane rebate imediatamente: "São todas meninas! Todas elas têm perereca, não tem ninguém com piupiu aqui!"


Quando todos se dirigem ao último conjunto de canis, onde ficam os maiores cães, aparece Zazá, uma cadela longilínea e de olhos puxados, traços quase asiáticos e um porte elegante, vigoroso. Perseguindo Jane com dedicação, ela responde fielmente aos comandos da dona e esquiva-se quando é energicamente reprimida. Mesmo assim, continua à espreita, cuidadosa ao se aproximar dos canis. Ao comentar sobre o estado lastimável em que muitos animais são encontrados, Jane acena para um cachorro cego, ao qual falta um olho. Ela também maldiz a doença dos carrapatos, que atinge o ápice no fim do ano e é um verdadeiro pesadelo. Todos os cães são acometidos pelos parasitas ao mesmo tempo, em abundância. Tratá-los exige paciência e cautela. "Eu não vou colocar qualquer veneno no cachorro; só aplico quando sei que realmente vai funcionar. Caso contrário, eu mato os carrapatos pessoalmente", explica. E acrescenta: "Gosto de pegá-los [os carrapatos] um por um e esmagá-los com o dedo. Podem dizer que espalha os ovos, não to nem aí: mato mesmo. É um prazer enorme". No canil vizinho, dois cães latem braviamente. "Sorri, Teca, sorri pra mamãe!", deleita-se Luzia, rindo e batendo palmas. O sorriso de Teca é um cômico arreganhar de dentes. Entre os outros cães daquele setor, estão Ada, o segundo cão de guarda do local, mas disponível para adoção; duas cadelas enfrentadoras, mas que se mostram medrosas quando alguém se aproxima demais, e Denis (foto), que late vigorosamente para o caseiro, mas que está pronto para ser adotado por um homem que mora nas redondezas.


Luzia aproveita a sorte de Denis para explicar o processo de adoção: quando uma pessoa manifesta interesse por algum animal, ela é convocada até o abrigo para escolher o cão ou o gato que mais lhe apetecem. Então, um ou dois voluntários visitam a casa da pessoa, para sondar as condições em que o bicho será adotado, e se o lar do interessado é adequado. Passados 30 dias depois da adoção, os voluntários voltam à casa, para verificar se o animal continua feliz e bem tratado. "Nós não vamos entregar um cachorro a alguém que não consiga cuidar dele. Tratar esses animais dá o maior trabalho. Não vamos doar um cão que tenha de voltar pra cá, todo doente, como foi encontrado primeiro. Começar tudo do zero? Não mesmo", resolve Luzia. Vera ressalta as dificuldades que acometem a organização, e que são necessários a divulgação e o trabalho de mais voluntários. "A gente precisa de ração, recursos financeiros, voluntários... e de alguém que divulgue nosso trabalho, claro", enumera sorrindo.

A depender da beleza dos animais para adoção e da saúde de que gozam, a organização não passaria por tantos problemas. Enquanto não surjam interessados, é provável que os voluntários continuem trabalhando incessantemente, para construir aquele belo mundo a que se poderia denominar de homens e cães.


*não ficou claro se o sobrenome de Jane é Rosenclent ou Rosenclair.

acesse o site da organização: www.shb.org.br


quinta-feira, novembro 15, 2007

Meu nome é Peralta


Peralta chega sempre pela manhã ao estabelecimento de portinholas verdes. Fica à porta, vigilante, como dono do estabelecimento, e rosna para os que chegam perto, com as mãos estendidas para fazer carinho. Peralta não gosta mesmo desse tipo de aproximação: é um cachorro frio, que ouve a mulher repreendê-lo pelo nome e logo pára de rosnar. No entanto, continua desconfiado, olhando a rua meio de soslaio, e movendo o focinho como quem aspira o cheiro dos estranhos. A coleira vermelha é para que ninguém o maltrate por aí: em Corumbá, como deve ser em outras dessas cidades pequenas, os cachorros têm donos, mas não têm teto: sua casa são as ruas. Saem por aí, e às vezes voltam. Quando não voltam, o dono pode ficar tranqüilo, porque é provável que os cachorros estejam apenas a algumas ruas de distância, fazendo charme na praça da Matriz, mendigando comida na frente das pousadas ou vadiando com outros cachorros. O máximo a que chegam é fazer filhotes. Como têm vida fácil, podem abandonar a cadela e voltar para a guarda de suas portinholas; a cadela que se vire com as crias, que, muito provável, vão fugir da mãe, latir para os turistas, vagabundear mais ainda pelas ruas etc.

Peralta, não. Peralta é um cão de classe e não se mistura com essa gentalha: com seu gingado especial, por causa de suas patas tortas, que imitam um coração, ele vaga sozinho pelas noites, volta durante o dia para guardar fielmente o estabelecimento da dona, e rosna apenas para os turistas que vêm incomodá-lo. Secretamente, porém, deve manter um enorme orgulho – o de saber posar para fotos.

quinta-feira, novembro 08, 2007

A família do Brasil

Estação de reciclagem corumbaense: administração negligente da prefeitura não deu prosseguimento a iniciativa privada.

A família de José Geraldo da Silva mora depois de uma imensa antena que, olhando do centro de Corumbá (GO), parece ficar muito longe da cidade. Em todo o terreno repleto de animais diversos e duas casas onde moram muitas pessoas, um quadro de Santo Expedito (o das causas impossíveis) fica sozinho em uma parede de tijolos, ao lado de outra onde se estendem dois violões. O primeiro a abrir o portão é um menino pequeno, de olhos assustados e boca suja do que parece ser chocolate. Logo depois, Nelci Lopes, a mãe, aparece e segue rumo à primeira casa, entrando num quarto com janela. Pára ali mesmo e olha para fora, deixando o sol iluminar-lhe a face e os cabelos castigados. Ela e o marido são os únicos catadores que ainda trabalham no lixão de Corumbá. Fazem o serviço há 11 anos, com ajuda esporádica de apenas um de seus filhos: os menores de idade ainda estudam, outros já cresceram e trabalham. Ao todo são nove. "A gente sabe que estudar é importante", dizem. Conseguem, por mês, 900 reais. Com o dinheiro arrecadado, adquiriram três carroças diferentes: uma específica para o trabalho, e as outras para passeios e eventualidades. O casal é tão íntimo do emprego que possui a chave do lixão, doada pela prefeitura. Como são quase os donos do lugar, sabem de tudo sobre as redondezas, inclusive sobre a estação de reciclagem, construída por uma empresa privada, mas que não entrou em funcionamento por falta de incentivo municipal. A estação foi logo saqueada, e, hoje, resta apenas a carcaça depredada: ao lado de uma árvore, a casa permanece silenciosa, sem telhas ou portas, deixando a luz solar criar sombras tristes no chão de concreto. A prefeitura também já proibiu o trabalho dos dois catadores, por questões de saúde e segurança, mas eles contam que, na época, faziam o serviço à noite, longe da fiscalização do município. O filho mais velho, José Carlos, já cortou o pé trabalhando no lixão, aos 9 anos, já que somente o casal possui botas e luvas protetoras. Na época, José Geraldo, o pai, viu-se obrigado a levar o menino para o hospital público. O tratamento da ferida custou-lhe, mesmo assim, 70 reais. Sobre o pagamento contraditório com o qual teve de arcar no hospital, ele reclama: "Prefeito em Corumbá não tem, não. Pra ajudar, não. Só pra atrapalhar". Hoje, o filho José Carlos, 16, dono de um semblante maduro para a idade, trabalha numa das muitas colheitas de tomate, que têm crescido na região devido à grande demanda pelos produtos em Brasília e São Paulo. O rapaz, que já freqüentou escola e diz gostar de estudar, parou de ir ao colégio por falta de transporte: havia ônibus apenas para ida, nunca para volta. Para ele, voltar a pé era muito incômodo, e, se hoje consegue trabalhar na colheita, é porque existe transporte ida-e-volta.

Fora da casa, os animais parecem se entender. Algumas vacas de fazendeiros vizinhos chegam muito perto da cerca, para experimentar das cascas secas de milho que revestem o chão. Os cachorros não se deixam intimidar pela presença afoita das crianças pequenas, e vice-versa. José Geraldo conta, com entusiasmo, que conseguirá tijolos de alguma fábrica da região para construir uma nova área ali fora, com um fogão a lenha onde fará o próprio café. "Vocês vão voltar em breve? Quando vocês voltarem a Corumbá, podem vir tomar café com a gente", e continua a discorrer sobre seus planos. É aí que um dos filhos, aquele que abrira o portão, chega perto da cerca e vai conversar com José Carlos. As vacas, ariscas, assustam-se e descem rápido o declive, como num trote. Entre uma história e outra, os catadores parecem perder-se no tempo e na própria idade, que eles não sabem ao certo. Sabem que José nasceu em 1955, e que a mulher é quatro anos mais jovem. "Façam as contas", José Geraldo sorri, com timidez na face repleta de rugas. De qualquer forma, não parecem se importar muito com a idade que não sabem calcular, porque Nelci Lopes logo sai de casa e vai se juntar ao resto da família, suas sobrinhas, que observam a tudo num canto afastado. "Ave Maria! Meu terreno tá uma bagunça!". Calma, Nelci, porque Corumbá de Goiás, o município sem prefeito, também está uma bagunça. É difícil entender como a família de catadores resiste com humor e hospitalidade a uma administração negligente – talvez o quadro de Santo Expedito sirva de explicação.

segunda-feira, outubro 29, 2007

Oba, acabaram as cigarras!

Oba, acabaram as cigarras!
A falta de chuvas ajuda a fortalecer o caráter, as cigarras só irritam as pessoas.

Observem o menino que se abana com volúpia no sofá. Ele pensa numa manifestação em praças públicas para a queima de cuecas e outras roupas de algodão. De agora em diante, apenas os tecidos de viscose serão permitidos. Seus pés têm a aparência suja de que suaram o dia inteiro, entraram em contato com a poeira e a fuligem secas que sobrevoam o asfalto e grudam nos chinelos. A pele de suas coxas grudou no couro sintético do sofá, e agora ele não ousa se mexer, porque sabe que qualquer movimento vai doer profundamente, como uma depilação em câmera lenta. O computador exala calor, que vai de carona com o barulhinho constante da CPU – vuuuu... Seu quarto, que funciona como um oásis nessas ocasiões, porque tem um ventilador silencioso, está repleto da presença da mãe, que ligou a TV para ver novela. Na superfície também quente do televisor, Suzana Vieira parece a Cher. Ela olha para a câmera e faz uma cara de deusa suprema, que ocupa o imaginário de cada espectador, de um jeito que faria a teoria hipodérmica fugir com medo. A noite prossegue quente e sem cigarras, porque ninguém precisa delas, ainda mais nesses dias gelatinosos de outubro, que têm gosto e cheiro de sangue que escorre pelo nariz de madrugada e fica seco no rosto. Umidade é para os calangos.

quarta-feira, outubro 24, 2007

Acabou a manteiga



Oba, acabou a manteiga!
O ferro ajuda a construir um país forte, a manteiga só engorda as pessoas.

Em uma dessas manhãs frias e tenebrosas que anunciam a guerra e a morte, os integrantes da família Volks acordaram cedo e desceram correndo para a mesa do café, em que os aguardava uma toalha desbotada e com migalhas do pão ralo do dia anterior. Abriram a geladeira, e de lá saiu o cheiro da sopa (também rala) que preparam para os almoços da semana. Quando o entregador de jornais passou pela janela, montado numa bicicleta que rangia, o cachorro da família latiu ferozmente, o que espantou o entregador e o fez largar a bicicleta à porta dos Volks.

Cada integrante pôde arrancar um pedaço tenro e saboroso da bicicleta, e todos se serviram à mesa. O bebê Luke, 1, ria satisfeito enquanto mastigava, com a gengiva, partes crocantes dos ferros. Tudo foi aproveitado na refeição: banco, guidão, rodas e correntes. A Volks mais idosa, Anne, 50, avó do bebê, devorou tudo que lhe coube, e garante que o óleo serve como ótimo tempero. "Nunca comi coisa melhor. O governo está certo: o ferro ajuda a construir um país forte. Quem precisa de manteiga?"

fotomontagem de John Heartfield

terça-feira, outubro 16, 2007

Voltar ao pó


Em 1990 (por aí) eu tinha enormes bochechas e usava escondidos os Rayban de minha mãe, porque ficavam mega-sexies etc. Foi nesse ano que fomos a Natal, e foi nas praias natalenses que meu corpo pequeno e irresponsavelmente bronzeado era açoitado pelos vendavais de areia (depois o destino me mandaria àquelas terras mais seis vezes). Ainda era a época em que hospedávamo-nos corajosamente em casas alugadas e sobrevivíamos à boa vontade dos nossos relapsos. Foi assim que, cansado da enrolação paterna, eu tirei a roupa, vesti a sunga e saí percorrendo a praia, naqueles passinhos corridos das crianças que acabaram de aprender a andar. O sol me recebia com fé e eu encarei o mar com as vistas nuas, e depois entrei lentamente na água, porque lá eu sabia que os ventos com areia não iriam me atingir.

Então veio uma mulher. Ela chegou a tempo suficiente para que eu não sentisse a falta dos pais que eu havia perdido após minha decisão resoluta (àquela altura, minha mãe, esbaforida e quase inconsciente, percorria a vizinhança, e meu pai ainda conversava com a vizinha). A mulher perguntou meu nome e minha procedência, e eu a levei até a casa que nos servia de abrigo. Foi um reencontro emocionante e cheio de agradecimentos, mas eu, pequeno, via só pernas.

Do pó vieste, e ao pó hás de retornar.

domingo, outubro 14, 2007

A devolução do DVD

Um cliente revoltado abandona a loja a passos de criança emburrada e o próximo cliente se aproxima timidamente do balcão, entrega os DVDs num plástico humilde e rasgado e volta a perguntar:
"vocês têm mulheres à beira de um ataque de nervos?"
"tem mulheres à beira de um ataque de nervos aí, gerson?"
"ah, tinha... mas não está mais na loja".
"desculpe, senhor, não está mais na loja, e seus DVDs ficaram em 7 reais e..."
"eu já paguei".
"ah?, para qual funcionário você..."
"era o moço com cara de nuvem".
"FELIPE!!!"
O Moço com Cara de Nuvem sai da seção pornô carregando umas coisas indecorosas que até Deus duvida. Olha o garoto como quem remói uma longa história e cai num silêncio profundo, que é logo rompido por uma criança birrenta que vasculha uma prateleira, ao fundo. O moço enfim confirma que o cliente pagou em-di-nhei-ro.
"e olha o que eu achei!", completa, ofegante e vermelho, "é o mulheres à beira de um ataque de nervos, que estava na seção pornô por engano".
E foi assim que o chefe da locadora, vendo a cena embaraçosa, deixou que o garoto levasse um Almodóvar de graça.*
*
é uma pena que se trata de uma ficção, uma história inventada; eu teria ficado feliz.

quarta-feira, outubro 10, 2007

O sumiço do DVD


O moço da locadora (acho mais fácil chamar assim, é genérico etc) trabalha avidamente em seu computador.
"Moço, tem mulheres à beira de um ataque de nervos?"
(esse título não precisava ser tão grande, mas que idéia)
Moço genérico olha para a tela com cara de nuvem e responde:
"Tem sim, está na seção dos cults".
Moço genérico acompanha garoto sonhador de olhos chorosos (este sou eu) e os dois vasculham loucamente as prateleiras, mas nada encontram. Moço genérico some, procura na seção de dicas, de comédias, dramas, de "arte" (?), mas não há nada lá. A seção de "arte" é a mais arbitrária, é ali que ficam os filmes que marcaram época, alguns alemães, umas coisas antiqüíssimas, e alguns asiáticos quaisquer. Alguns adolescentes estacionam no meio das prateleiras, e dificultam a locomoção do garoto choroso. Moço volta e diz, ainda com cara de nuvem:
"É, pelo jeito não está na loja", e olha para o teto, procurando conforto e refúgio para a reclamação que não vem. Fica por isso mesmo. Garoto sonhador de olhos decepcionados sente-se forçado a alugar um drama com a Cate Blanchett, outro com chinesas hedonistas que dão pra todo mundo e outro do Almodóvar, para substituir o mulheres. Afinal, o feriado era para ser bom.

segunda-feira, outubro 08, 2007

Querido mundo,

Estou muito assustado (mesmo) por saber que não há previsão de chuvas para a primeira metade deste mês. Resolve isso logo, meu.

Grande abraço,
um habitante.


P.S.: eu sei que isso não é problema seu, mas ah.

quinta-feira, setembro 27, 2007

Rato de esgoto

Enquanto o cartão de crédito era aprovado pelo sistema, debitando da minha conta um valor de 20,85 reais sabiamente gastos em material de leitura, um flanelinha entra na banca de jornais e resmunga para a dona, depositando um dinheiro no balcão. Contrariada, ela olha para mim e murmura, com ar de reprovação, abre uma gaveta que não consigo ver e entrega ao homem um cigarro qualquer. Ele diz um "obrigado" embolado e sai desengonçado. "Sabe como os policiais chamam esse maldito? Rato de esgoto", explica a dona da banca, com tanto nojo no "esgoto" que atrairia moscas. "Dizem que ele mata qualquer um. E o povo ainda pede pra lavar e vigiar os carros." Achando curioso que ela ainda venda cigarros para ele, saio da banca com a mochila nas costas e vejo Rato de Esgoto virando a esquina.

De repente eu percebi que tinha uma personagem, uma pauta e um texto de novo jornalismo.

quarta-feira, setembro 26, 2007

Hermanas


Seria útil entender os mecanismos do planeta, de vez em quando, para conhecer toda a lógica por trás da looooonga estiagem, do calor infernal, dos vendavais súbitos e misteriosos, e por fim das chuvas que não há. Pois ultimamente, e mais do que nunca, todos os dias são os mais quentes do ano. Em seguida, quando começa a primavera, as cigarras saem do chão e cantam para o nada, com nítido ar de dúvida. Percebem que não é o momento, e vazam. À noite, aparecem enormes vendavais, que fazem voar os papéis dentro das casas e anunciam chuvas fortes, mas nem.


Cigarras, hermanas, acordai.
(e, para hoje, uma foto didática.)

terça-feira, setembro 25, 2007

Não. Ouso dizer que minha admiração é maior, por ainda haver no mundo pessoas como você. E se os sorrisos são tão imensos, mais encantadores ainda são os olhares cúmplices, de gente que se entende e que se permite sentir o amor. Pois se não há amor na vida, a vida não tem sentido; o propósito de estar no mundo é aspirar o perfume dos outros, ouvir o coração dos outros, deitar no colo dos outros, afagar a cabeça dos outros, e dividir os momentos com os outros. E que me deixem, por favor, amar de verdade, porque este é o meu papel mais humilde no mundo. E que não me proíbam o amor, para que eu guarde as lembranças, e construa mais esta casa de mim.

E que venham infinitas outras lembranças. Para que eu me preserve em repouso neste ombro, de onde eu ouço a beleza do mundo e posso me completar no amar.

sexta-feira, setembro 21, 2007

Pinóquio

Finalmente estive no interior da baleia branca. Sempre altaneiro, este enorme mamífero dos mares exibia a graça de estar atolado numa calçada estranhamente ampla, que é o único espaço para pedestres em toda a cidade. Tem mil nadadeiras e mil caudas, e um esguicho gigantesco de água com fitas, que casa muito bem com a lua. Faz uma sombra enorme sobre aqueles que ainda se aventuram sob seu corpo diet, e, com uma língua enorme que deita ao chão, recebe a todos sentindo cócegas na garganta vermelha.

Lá dentro, o vácuo da carcaça faz um barulho que se confunde com silêncio. É o barulho das luzes, das sombras nos pilares, e dos elevadores que transportam turistas sem-noção que passam na frente da sua foto e ainda pedem pra você tirar foto pra eles. Daí você faz o imenso favor, entrega a câmera de qualquer jeito e sai deslizando pelas tripas da baleia, o que é uma das melhores sensações do mundo. Tudo é tão oco, silencioso e cuidadosamente iluminado que dá uma vontade imensa de correr para todos os cantos, numa tentativa inválida de preencher todo o espaço. É a mesma sensação de estar num hospital muito branco e grande. Lá embaixo, longas escadas fazem labirintos e conduzem a limpos banheiros (!). Frustrado diante da perspectiva de não ter encontrado nenhum tesouro, você volta para o estômago principal da baleia (sei lá, esses bichos têm estômago até no cérebro), vasculha os restos de comida, acha alguns cadávares e uns livros, desde Harry Potter até O Suicídio, passando por A Voz do Fogo e Sandman, que são leituras que eu recomendo. É aí que você lembra ser muito novo para morrer, faz cócegas no barrigão da baleia e é regurgitado com intensidade. E ainda consegue assinar o livro de visitas ("que lugar lindo :O Flávio, Brasília"). Lá fora, alguns gatos de rua caçam andorinhas estilosas, e eles ainda se mexem com elegância, para sair na foto; não se importam com seu estado deplorável, algas e sal no cabelo.

Dias depois, repete a dose com uma menina sensual de shortinho, que se deixa iluminar, como a Virgem, no âmago mais surrealista da baleia. Encontra colegas e faz amigos, toma sorvetes, e faz caridades. E fica com saudades da baleia.

Passeando com Guevara


"Os médicos identificaram uma ferida leve na batata da perna direita, oito tiros no tórax, hemorragia abundante, cabelos castanhos, encaracolados, sobrancelhas densas, nariz reto, marcas de nicotina nos dentes, uma cicatriz longa no dorso da mão esquerda, 173cm de altura e 'olhos levemente azuis'. Foi Martínez Casso quem amputou cirurgicamente as duas mãos de Guevara. Os cotos foram costurados. O cadáver de Che só se reconciliaria com as mãos trinta anos depois".
Revista piauí 12, p. 39



Os médicos foram obrigados a omitir a hora da morte, por razões políticas. Se não fosse uma necropsia casual, teriam relatado que os "cabelos castanhos, encaracolados" caíam por cima das "sobrancelhas densas" e perfaziam com o "nariz reto" uma expressão sensual que não sucumbia perante o sorriso cheio de "marcas de nicotina". Seu sex appeal seria assinalado ainda na modernidade, desbancando outras cafonices. Imagina, você é o líder revolucionário mais sexy a ter caminhado na Terra; então você morre com oito tiros, e durante a necropsia arrancam suas mãos, e ficam passeando com elas por aí, de um lado pro outro, durante trinta anos. E ainda mentem, dizendo que você foi devidamente cremado. Ninguém descansa em paz.

terça-feira, setembro 18, 2007

Morango podre


O menino acordava cedo e abria a despensa da cozinha; de lá saíam borboletas, e ele saía em Nárnia.


No dia mais quente do ano, acordou atrasado e saiu correndo; não conseguiu se arrumar a contento e vestiu a roupa mais desconfortável. Com a virilha repuxando por causa de alergias (dessas que vêm e vão), confundiu freio com acelerador, e quase bateu o carro. Enfrentou longas filas e gente suada. Comprou morangos orgânicos a um preço convidativo. Quase quebrou o dedo jogando baralho violentamente. Quase não teve dinheiro para tirar xerox. Comprou salada de frutas com moedas sujas, e assou demoradamente, pedaço por pedaço, numa sala quente com ventiladores ineficazes, onde os morangos ficaram podres. Saiu atrasado, enfrentou banheiro sujo, e enfrentou filas de carros. Os morangos cheiravam. Aspirou fumaça de caminhão, e sacolejou em buracos. Chegou esbaforido, e perdeu o documento do carro (imediatamente encontrado pelo morador do 507; obrigado, morador do 507!). Reparou na rachadura da janela, tomou banho frio, leu, comeu e escreveu. Checou emails, e ainda não trocou o livro. Abriu a despensa da cozinha, mas não viu as borboletas; viu apenas uma lagartixa cega, branca e crescida. Fechou a despensa com amargor, e não saiu em Nárnia.
Amanhã tem mais. Quem dera fosse em Nárnia.

sábado, setembro 15, 2007

Beneplasto II

Je veux écouter
la vie trop belle
qui nous attend
avec des papillions rouges
avec des rêves douces
avec des choses mignones


Penélope parou na faixa de pedófilos e aproveitou para exibir seus fonfons, suspendendo a roupa até a altura do queixo. Aplausos da natureza, lagartixas envergonhadas, grande comoção, impostos. Chegou a rodoviária, com as luzes ligadas e fazendo feijoada. Penélope vazou. Prostrada diante da arruaça, abriu sua camareira e pularam de lá os tijolos vazios de beneplasto. Fruta que caiu, cadê meu beneplasto? Só tinha o genérico, o beneplácito. Nem que a vaca tussa. Muu. Fula da morte, retirou do porta-botas um enooooooorme sandalhão de acrílico e saiu do tamborim, e foi se esconder atrás do chiqueiro mais próximo. O sandalhão era pra despistar a rodoviária. Só que a rodoviária viu tudo e desceu a cebola na mulher. Vários anos na carrocinha.

Incrível como as coisas se repetem. Culpa dos beneplastos, que, desaparecidos, cantavam Pato Fu:

"Vou ter crise de comportam e n t o
vou sorrir querendo chorAR
a músicA é f e i t a de s o n s
e os sons são feitos de AR
e agora que a banda p a s s o u
nada vai ficar, nada vai ficar, nada vai fic ar ..."



quinta-feira, setembro 06, 2007

Paprika III



Toda vez, quando deitada, imaginava que o caminho para o sono era galgado lentamente, em níveis graduais que começavam pela superfície da cama, e passavam por camadas cada vez mais profundas através da cama, enquanto as vozes surgiam em sua cabeça, e ela afundava sempre, sem receio, até chegar ao jardim encantado que havia debaixo da cama, onde enfim começavam os sonhos de verdade.

Lá, o mesmo caminho conduzia-a com o bucolismo da Terra dos Cem Acres, o que lhe provocava cócegas engraçadas na face, porque lembrava a infância, mas ela sempre chegava a lugares novos e desconhecidos, como na vez em que se deparou com um carrossel etéreo, girando sob um céu muito branco e situado num piso barato de cozinha. Os palhacinhos riam dela naquele misterioso carrossel das recordações. Havia o ranger do brinquedo velho, e a música psicodélica do parque. Os cavalos subiam e desciam numa coreografia enervante que era pura náusea. De repente, cheiro de pipoca. Algodão doce, sorvete, risos. Alegria. Um dente que caía graciosamente, ao gosto do vento. O mendigo que grudava nela como um chiclete inconveniente. A lentidão rumo ao rigozijo inatingível. Um cabelo longo e escuro, que subia graciosamente para o céu. Um tombo no chão, e enfim o despertar do sonho misterioso, acordando em outro carrossel.

(na foto, desenho de fu-ko ueda)

domingo, setembro 02, 2007

Sete coisas

O blog http://mentedivergente.blogspot.com/ me sugeriu este desafio. São 7 coisas que eu devo dizer sobre mim, vamos lá.

1. Eu fui uma criança bem feliz. Andei de bicicleta, viajei no tempo, conheci inúmeros países, fabriquei insetos e Pokémons, vi desenhos, joguei, dancei, tive brinquedos vários, ganhei pintinhos que viraram galinhas e hamsters que fugiram, peixes que morreram diariamente e tartarugas pegajosas. Aliás, só tive animais incomuns. Hoje posso dizer orgulhosamente que tive uma infância muito boa.

2. Ainda leio Turma da Mônica. É um hábito relativamente saudável, que me provoca risadas muito demoradas de vez em quando.

3. Tenho um olfato sensível, e um paladar razoavelmente apurado. De modo que posso sentir odores a distâncias consideráveis, e ainda agregar valor a tais odores. Todos os aromas me trazem lembranças de maneira muito intensa; eu me envolvo muito com eles. E não há nada que me deixe mais perturbado do que uma mistura descuidada de perfumes, como na missa. As pessoas vão muito perfumadas e sentam muito perto, os cheiros se misturam e eu fico impaciente. Aliás, pessoas muito arrumadas também me incomodam profundamente.

4. Eu tenho pavor a crianças. Gosto apenas das reservadas e pensativas, aquelas que ficam caladas em um canto e sorriem com inteligência quando você olha para elas.

5. E recentemente descobri que gosto muito dos grandes cães. Antes tinha medo deles. Depois tive um cachorro, e venci o medo. Agora admiro o andar paciente e a expressão otimista dos labradores, dos boxers, dos basset hounds. Eles têm um brilho nos olhos que é típico das amizades cúmplices.

6. Tenho medo de escuro. Pelo amor de Deus, não me coloquem sozinho num quarto escuro. Eu começo a ver coisas, suar frio, sentir arrepios, achar que alguém está atrás de mim, esse tipo de coisa. Quando desligo a luz da cozinha e preciso atravessar a sala escura, vou correndo, achando que alguém me persegue. Digno de registro. É um trauma provavelmente nascido depois que andei no trem-fantasma pela primeira vez. Eu morria de medo, mas era um dos meus brinquedos preferidos. Aliás, eu gostava muito de parques de diversão. Já mencionei que tive uma boa infância?

7. Nunca me perguntaram, também nunca o fizeram, mas acho que gostaria de receber flores em alguma comemoração. Talvez no aniversário. Elas são coloridas, otimistas e tranqüilas, como um lembrete de como a vida é bonita em demonstrações tão simples de afeto. Existe toda a questão do aroma também. E elas melhorariam o aspecto do meu quarto (não que ele seja feio, mas enfim). Não tenho uma flor preferida, gosto dos arranjos que combinam cores e aromas. Ah, gosto dos girassóis. São sorridentes. Aliás, eu gostaria de trabalhar um dia em floriculturas, ou em hortas, pomares. Acho que herdei do meu pai o gosto pela jardinagem, hahahahahaha.

sábado, agosto 25, 2007

Tempo de (novos) imperativos

"Pense, fale, compre, beba, leia, vote, não se esqueça, tenha, seja, ouça, diga, pense, more, gaste, viva..."


Esqueça tudo isso. A ordem agora é parar embaixo de um prédio e contemplar. Observe como as varandas empilham-se umas sobre as outras, e vão subindo indefinidamente até atingir um céu tempestuoso. Fotografe. Corra sozinho num campo aberto, no meio de uma tempestade daquelas, e morra de medo de ser atingido por um raio. Perca o fôlego e engula água da chuva. Gargalhe para o bebê mais próximo, até ele se empolgar e soltar gritinhos agudos. Observe uma borboleta recém-saída do casulo, desamassando as asas, ao gosto do vento. Imagine que dor horrível as borboletas devem sentir neste instante. Descubra que o detergente de limão da BomBril é "dermatologicamente testado". Revolte-se e xingue a BomBril em todas as línguas. Proteja-se do inverno seco com algum hidratante da Nivea, porque esta sim não realiza testes. Leia Calvin & Haroldo, porque é superotimista. Aliás, leia de tudo, mas faça um intervalo entre os livros da Clarice, para evitar crises de depressão. Faça elogios sinceros até mesmo à sua dentista: ela também é um ser humano. No supermercado, sinta o cheiro das hortaliças, das frutas e dos vegetais, passe longe da sessão de carnes e peixes, e se perca na sessão de chocolates. Leia os rótulos, e tente imaginar que ingredientes serão aqueles. No caixa, ao receber a nota fiscal, agradeça honestamente e abra um sorriso demorado. Sorria também para os cães vira-latas, e repare que eles retribuem com o mais amistoso dos olhares. Observe os lagartos que se estendem ao sol, e veja como a natureza é linda. Abrace seu namorado na altura do peito, e ouça-lhe o coração (essa parte é incrível, parece que você encontra a essência mais sincera da vida). Repare que as pessoas ficam bonitas sob as lâmpadas alaranjadas dos postes. Procure o amor, e encontre-o. Aprenda o amor. Viva o amor. Durma bem, e escreva.

sexta-feira, agosto 17, 2007

Morangos verdes fritos


Os morangos vermelhíssimos contemplavam a rua numa alegria tão enorme que, premidos em sua bandeja de plástico, pareciam ter nascido ali mesmo. Tinham um olhar de sapiência que até em mim me pareceria estranhamente raro. O papel transparente privava-lhes da brisa seca do inverno, ou de um contato mais direto com o sol, mas a plaquinha, com solenidade japonesa, anunciava ainda seu destino horrível: morangos orgânicos por 3 reais. A vendedora assegurou, com uma expressão muito de virgem, que estes eram muito doces, "você nem vai precisar de creme". Creme seria a última coisa que eu jogaria em morangos, pensei assustado, Já que costumo cobri-los com granola, ou mel. Alimentos assim vermelhíssimos costumam vir cheios de agrotóxicos: morangos, tomates, mamilos, lábios e vaginas; então é bom quando os há orgânicos. Mamilos são mamãos pequenos como jabuticabas, lábios são cítricos, meio que ardem e nos fazem fechar os olhos, vaginas são, bem. [Insira aqui sua descrição sensual para vaginas]. Pois bem, até estes morangos eram iguais aos outros, e iguais às outras coisas prazerosas no mundo, vermelhíssimos, era o que eu dizia, mas clarinhos por dentro, quase brancos. Porque quase brancos são os sorrisos, os dentes, a amizade e o amor, os afagos no cabelo, os perfumes onipresentes, e o olhar amistoso dos grandes cães. A natureza sabe o que faz.

quarta-feira, agosto 15, 2007

Do dia em que Deus nasceu


Hoje eu andei até a sala e vi que no vaso de uma das plantas havia um balão de coração fincado na terra. Pequeno e muito vermelho, inclinava-se para o lado como quem espiona a casa inteira, feito a mais intrusa (e benquista) das paixões, semelhante a um ET virginal, altaneiro e quase sorridente. Dividia o espaço da planta como quem diz "nasceu amor no seu jardim".

Nasceu amor no meu jardim.
Adubaram meu coração outrora árido,
e da brisa perfumada da Terra veio o recado:
"bem-vindo à melhor das sensações,
esta que afaga e incomoda e o teu peito de mim".
Já diziam as antigas civilizações, aquelas que desapareceram há muitos anos, que o amor é a manifestação mais próxima de Deus; faz o coração sair pela boca, e está muito dentro dos homens. Então, é certo que o lide das próximas notícias dirá: "Seres humanos descobrem que Deus nasce em jardins quando primeiramente o coração sai pela boca". Mas antes, é claro, ler-se-á que "Na manhã de hoje, Deus brotou na casa do Flávio". E aí haverá coletivas de imprensa, pesquisas científicias, tudo resultará infrutífero, porque eu poderei dizer apenas "Obrigado por me fazer viver novamente".

quinta-feira, agosto 09, 2007

Paprika II


"Dear Leonard, to look at life in the face, always to look at life in the face, and to know it for what it is" - Virginia Woolf

E, sobretudo, vivia intensamente. Às vezes mais, às vezes menos, mas a fronte alta e o cabelo magenta, com 10% de ciano, e as tatuagens provocantes na clavícula, que desciam para sabe-se onde, eram um conselho de como encarar a vida de frente. Sua imaginação alucinada via no tapete do banheiro uma porta que se abria para o inferno, e de lá vinham labaredas grandiosíssimas de um fogo vermelho muito bonito; via o coração da Terra, o centro do Inferno, o oposto do Céu. Às vezes apareciam demônios de que até Deus duvidaria. Conversava com o próprio reflexo no espelho, sentia medo dos azulejos da cozinha, temia a água até a morte, discutia com a louça suja. Berrava com a orquídea do quarto, cujo nome era Edileusa, putaquepariu, Edileusa, tá maluca?!, tá maluca?! Assim mesmo, com ponto de exclamação, tudo terminava em ponto de exclamação. Colocava música alta nos fones de ouvido e rolava pelo chão da sala, sofrendo dos amores nunca vividos; as lágrimas surgiam abundantes, escorriam pela face vermelha e queimavam os fones de ouvido.

Então houve o dia mais quente da História, era sua oportunidade para viver o mundo; saiu de camisola e pôs-se a correr, e toda aquela dor excruciante nos músculos, a face contorcia-se de dor, o tecido sedoso do vestido marcava-lhe o corpo profundamente nu, e ela abriu os braços; a beleza está nas ruas! Corria de olhos fechados, os braços muito abertos, doíam os dedos; desejava loucamente ser atropelada, inclusive a morte ela queria receber com a maior dor possível, porque até a morte era para ser intensamente vivida, e correu desvairada, foi ao encontro do céu, das nuvens, dos raios e trovões, enfim.

Os jornais do dia seguinte falariam de uma moça de aparência peculiar que desaparecera sem deixar rastros. Mentira: ela correra tanto e tão rápido, com as mãos tão espalmadas, que alçara vôo. Morrera como se devia morrer. Ao fim da vida, se não se tivesse ido antes, estaria satisfeita por cada momento aproveitado ao máximo, cada frase dita com vontade, com a maior das sinceridades, cada emoção vivida ao extremo, afinal qual seria o sentido de viver e não sentir, e não dizer eu-te-amo, e não abraçar forte, e não beijar com força, e não dormir sobre os livros, e não gargalhar das besteiras, etc etc? Bom mesmo era encarar a vida. De frente.

segunda-feira, agosto 06, 2007

Segredos do vento


O vento lhe segredou aos ouvidos. Contou-lhe dos tormentos mundanos que diminuem os homens, esses que os roem por dentro, corroem, viram tudo do avesso, enfim. Parecem nossa dor diária e incompartilhável. O gosto amargo da bebida, o pão que o diabo amassou. Virar a esquina e encontrar a miséria estendida diante de nós. Chorar por dentro, sentir-se incapaz. Poluir o mundo e não sentir culpa, arrebatar-se pelo ciúme. Ciúme é desamor. Conhecer o desconhecido e sentir a dor de um parto, porque a antipatia é o pior dos filhos a parir; encarar o oceano.
Apenas depois, chegar à porta suprema e girar a maçaneta, abrir a caixa de pandora, e receber a luz. Ver a vida por todos os ângulos, tomar consciência, amar ao outro em completude, enxergar através, cair nos gracejos da paixão. Encontrar a beleza das rugas, da pele flácida, do retorno à inocênca. Sentir a leveza dos gestos, o som da terra ao fecundar-se. Beijar a face do irmão, encarar o oceano. Viver-se, nascer e morrer na certeza de que se amou, porque amor incorreto não há. Há uma vida que nos espera.

quinta-feira, agosto 02, 2007

O planeta deles


Dizem os documentários alternativos que, muito antes de os europeus descobrirem o zepelim, os maias já haviam mapeado toda a galáxia. Eles sabiam quantos dias durava um ano, e sabiam quanto durava um ano em Vênus, e perceberam que os planetas giravam em torno do Sol, e que o Sol girava em torno de uma galáxia maior, que emitia uma luz muito forte a cada 5.125 anos, capaz de alinhar os planetas, alterar seus campos magnéticos e despertar a consciência do homem e dos outros animais. Acreditavam que a sombra da Lua na Terra era capaz de produzir desgraças. Depois, a Nasa descobriu que a sombra da Lua percorre a Europa, o Oriente Médio e o sudeste da Índia. De um dia para o outro, os maias desapareceram. Todos, de uma vez só. Deixaram intactas suas construções, seus equipamentos, seus cálculos e escritos, e escafederam. Restam apenas as conjecturas, muitas das quais asseguram que eles foram por vontade própria, livre e espontaneamente. A imaginação humana supõe que eles observam a Terra ainda hoje, porque vagam livremente pelas galáxias, em carroças que outrora aravam arrozais. E conversam sobre o planeta onde moraram, por meio de fluxo de consciência intercambiável. Assim:
Maia 1: Estabelecendo contato. Câmbio.
Maia 2: Contato efetuado. Pode reportar, câmbio.
Maia 1: O planeta deles ainda é um organismo vivo, mas extremamente desequilibrado. Estão fazendo várias coisas erradas, das quais algumas boas sobressaem. O habitat deles é cinza e esfumaçado, eles moram em - como posso dizer? - grandes tijolos espelhados que se erguem até o céu. Moram todos juntos, uns do lado dos outros, uns em cima dos outros, mas ninguém se conhece. A ciência que eles construíram permitiu que vivam longamente e em abundância, portanto eles imitam tatus vez ou outra, quando descem ao subsolo para embarcar em trens. Estão extremamente longe da natureza. O que conhecem de florestas e rios está apenas em fotos e numa caixa que eles usam muito. É uma caixa estranha, grande e lisa, com imagens que se mexem. Sua crença no Ser Superior é muito fragmentada. Alguns acreditam em um deus, outros acreditam em vários, outros em nenhum. Por causa disso, eles brigam eternamente e fazem guerras, explodem os tijolos espelhados. Aliás, ultimamente eles têm guerreado por causa do petróleo. Petróleo é um líquido que eles usam para andar em suas carroças, e é o principal motivo das chuvas ácidas, buracos na camada de ozônio, derretimento de geleiras...
Maia 2: Derretimento de geleiras? Céus. Desculpe a interrupção, mas é que achei estranho. Câmbio.
Maia 1: Sim, eu também acho. Enfim, ainda vai demorar até eles perceberem que no planeta há uma ligação em tudo, e que eles podem desaparecer como seres pensantes. Câmbio.
Maia 2: É o que nós dizíamos anteriormente, sobre eles precisarem optar entre a nova consciência ou o desaparecimento completo, até o dia 20/12/2012. Continue o relatório. Câmbio.
Maia 1: Eles ainda não perceberam que pertencem ao planeta, acreditam que o planeta lhes pertence, portanto criam animais. Aos animais foram designadas tarefas específicas, totalmente aleatórias. Cachorros e gatos servem para companhia, e vacas, galinhas, porcos, peixes, répteis, roedores, aves, todos estes servem para alimentação, transporte, montaria, entretenimento e pesquisa científica. Acham um absurdo comer cachorro, mas gostam de comer porcos, sendo os porcos mais inteligentes que crianças de 3 anos. Gostam de animais fofinhos, mas acham normal usá-los livremente para fazer produtos de beleza. Sua alimentação está repleta de derivados animais, inclusive leite. De vaca. Você acharia isso normal? Câmbio.
Maia 2: Não. Câmbio.
Maia 1: E ainda não desenvolveram uma consciência libertadora e plena do próprio corpo. Tomam remédio a qualquer sinal de irregularidade, em vez de manipular a energia vital. Câmbio.
Maia 2: E quanto ao planeta deles? Câmbio.
Maia 1: Está morrendo. O planeta deles está morrendo. Câmbio, desligo.

domingo, julho 29, 2007

Paprika



Vivia no mundo da lua. Da última vez que viu o barman despejar quilos de açúcar na bebida, imaginou a Morte deslizando lentamente as escadarias apertadas, como uma doença que corrói os ossos, tentando um disfarce cômico debaixo de um chapéu rosa-choque de muito mau gosto. A Morte é inconfundível, e seria em vão. Depois esqueceria a Ominosa na pista de dança, onde a fumaça de muitos odores convidava a uma viagem para lá de Bagdá. Quando a mulher gorda aproximava-se, dançado despudoradamente, avisava ao desconhecido mais próximo que a Morte havia chegado, e o aviso era entendido como um "oi, tá a fim?" (a estas alturas, qualquer palavra é compreendida com altíssimo teor sexual). Saía correndo, para refugiar-se nos substratos mais profundos da consciência (esta parte acontecia no sofá, ou no banheiro infecto e imundo, mas só em casos mais graves, e apenas se a noite estivesse para Castro Alves). O estofado do sofá era muito macio, muito mesmo, incrivelmente, e convidava a uns amassos indecentes, apesar do cheiro de mandioca puba que exalava. Mas acostumava-se, a gente se acostuma a cada coisa.

À saída, enfim, com a cabeça mais nas nuves do que nunca, dizia para a última menina da festa que "moça, seus peitos estão pra fora", mas era míope e nunca viria a descobrir que os peitos eram uma estampa meio árcade, meio barroca, da camiseta (são os barrocos que gostam dessas coisas espiraladas e redondas, esses rococós que parecem peitos, na cabeça dos míopes). Vivia no mundo da lua, era o que eu estava dizendo. Mas assim era bom.

quinta-feira, julho 05, 2007

As vantagens de um gato



Ganhei um gato que se chamava Totó. Tudo do Totó era pesado. Sua pelagem era pesada, sua cor era pesada, seu olhar era pesado, suas patas, seu andar, sua compleição era pesadíssima. Tinha um jeito peculiar de encarar a vida, deitava no braço do sofá e esticava a barriga estufada, deixava pesar cada pálpebra, e me olhava com um sono matador. Dormia, ronronando alto. Às vezes mexia as patas durante o sono, e eu me indagava se Totó sonhava. Sim, ele sonhava, como qualquer outro bicho senciente. Com que sonhava Totó? É provável que fosse com estradas amarelas e árvores estranhamente magentas, tudo muito colorido, em altíssimo grau de luminância, e ratinhos de chocolate que o vinham atazanar. Era nestes momentos que percebia o óbvio grau de parentesco entre "atazanar" e "ratazanas", achava evidente que as ratazanas viessem atazaná-lo. Eu ratazana, tu ratazanas! Rapidamente elaborava trava-línguas, e logo se via dizendo, enquanto mexia as patinhas, que as atazanas não podiam ratazaná-lo. Perseguia todas elas, matava cada uma, sem dó. Acordava no chão, de barriga para cima, transpirando. Não sabia por quê.
Na rua, meninos zombavam de mim e eu fingia que não era comigo. Voltava com sacolas lotadas de groceries (como dizê-lo em português?), algumas avelãs, revistinhas e revistões. O telefone não cessava de tocar, por causa das vendedoras de cartão de crédito, que ainda perturbavam os estudantes. A filha da vizinha de cima era um monstro, um bicho horroroso, e corria de patins no meu teto. Um barulho infernal, um caos doméstico, e o sofá úmido de meu suor.
De repente apareceu Totó, que ignorou minha cara de raiva, deitou ao meu lado e lambeu meu braço, e ficou lambendo. Eu impaciente, e um bicho me lambendo. Vantagens de ter um gato.
Na foto
, o gato Felus.

segunda-feira, junho 11, 2007


Sabemos que se trata de urina velha aquela água grudenta no chão do banheiro, mas ainda se espera com franqueza que seja qualquer outra coisa, porque entramos lá dentro calçando chinelos e uma calça - a preferida - que arrasta no chão. Os pés sentem-se molhados e frios, como a calça que se torna logo pegajosa. As torneiras estremecem e expelem um jorro violento de água, que nos cobre como num batismo, e os espelhos oxidados refletem o banheiro que parece ter saído de um jogo de terror, Resident Evil, Silent Hill, talvez. O exaustor gira lentamente, deixando entrar uma luz ocasional. Vez ou outra, alguém aparece à porta e desiste de entrar. O mictório de alumínio fede como um tanque nunca lavado. Na parede, um buraco escuro. Quando uma alma penada emergir arrastando-se da cratera sinistra, teremos há muito saído de lá.
E agora os estudantes voltam a ser atormentados por vendedoras de cartão de crédito.

terça-feira, maio 29, 2007

Beneplasto



Axila acordou sentindo uma imensa hermenêutica diatópica na cabeça. Axioma, seu irmão, descia de bunda a escada da sala. Todo dia um exercício novo.

-Axila, sua sovaca! - xingava a irmã, que procurava um beneplasto na privada da cozinha. Não achou.

-Axioma, cadê meu beneplasto?

-Só tem genérico, o beneplácito.

Axila, sem ler o logaritmo, ingeriu uma caixa de beneplácitos e teve uma acepção nervosa. Completamente possessa, defenestrou a epistemologia vazia, que atingiu o cocoruto de Axioma.

-Cuidado onde joga seus paquidermes! Fruta que caiu!

terça-feira, maio 08, 2007

Fluxo de consciência e as vendedoras do Credicard

Eu deveria estar estudando. E, na próxima vez em que minha mãe perguntar "o que você quer de aniversário?", eu respondo "um picolé de umbu". Melhor picolé que eu já comi na vida, ponto. De todo modo, o pátio (?) da universidade, mais uma vez, amarrota-se de vendedores de cartões de crédito. São mulheres, em sua maioria, todas enfiadas numa calça de tecido colante, que faz parte do uniforme. Elas vêm vez ou outra perturbar os juízos dos estudantes, interrompendo-os de hora em hora com a mesma pergunta, e o mesmo sorriso, e o mesmo uniforme. Tem sido assim desde a semana de 22.

Certa vez, uma delas bloqueou o caminho de um jovem que carregava uma mochila pesada, com aroma de ovo, e, incisiva, quase indecente, convidou: "vamos fazer seu cartão, chefia?". Chefia? "Não, já tenho o meu", o jovem respondeu, com a coluna arqueada por causa da mochila, desviando-se da vendedora e indo ao encontro de seu destino infeliz. A vendedora, cansada, quase revoltada, apelou para métodos menos cristãos e despiu-se das partes menos necessárias do uniforme, e, ao ritmo de uma música que ela mesma imaginou, provavelmente "Não Se Reprima", que a Xuxa cantava, dançou e vendeu mil cartões aos berros.

Desde então, a venda de cartões de crédito nunca mais foi a mesma. A vendedora também não, porque ganhou o prêmio de empreendedora do ano e agora mora na Polinésia, dando cursos, palestras e dirigindo seu próprio negócio de venda de cartões, que se mostrou altamente rentável.

E agora os estudantes podem caminhar em paz.
(eu deveria estar estudando)

sábado, maio 05, 2007

Baton


"Mãe, essa água é potável mesmo?"
- elefante de Tarzan.

A banquinha de doces do Sr. Manoel, ou Manô, como é carinhosamente conhecido entre os clientes mais íntimos, contém uma quantidade tão imensa de guloseimas e - perdão - de porcarias, que seria absolutamente impossível uma criança não parar para olhar (e fazer birra querendo algo, claro). Já não fossem as balinhas e os chocolates tão chamativos, envoltos em embalagens coloridíssimas, o Sr. Manuel - perdão: Manô -, naquele dia, gritava o lançamento de um novo produto. "Comprem aqui um delicioso baton sabor água!" Baton, para quem não conhece, é o famoso chocolate da Garoto, aquele em formato de bastão, em embalagem vermelha... Diz-se que outros batons já foram ao mercado, como o baton branco, que ainda se vende, baton cookies, baton sabor laranja, baton sabor UVA, baton sabor hortelã, baton-para-todos-os-gostos, enfim.

Talvez almejando uma fatia superseleta do mercado - os camelos sedentos do Saara -, a Garoto, estimulada pelas barraquinhas atraentes de todos os Manôs do país, lançou-se atrevida na fabricação dos deliciosos baton sabor água.

O polêmico baton sabor água vinha numa embalagem azul-calcinha, constratando com o ultrapassado baton ao leite, e custava R$0,25 a mais do que os outros baton. Um absurdo, diga-se, para um chocolate em cuja composição estrelavam, radiantes, os ingredientes mais normais: lecitina de soja, massa de cacau, manteiga de cacau, e... água (90% da composição, anunciava a embalagem, orgulhosa).

Água para dar e vender, pensei. Em tudo quanto é lugar, acrescentei mentalmente, enquanto usufruía do meu delicioso baton sabor água. Era horrível. Talvez contivesse água de bebedouro, água de torneira ("tap water", diriam os anglófonos), água de qualquer natureza não-potável. Assustador. Joguei o resto fora, no chão mesmo, porque, sendo 90% água, não faria de todo ruim.

O delicioso baton sabor água evaporou, ascendeu aos céus e viajou até a África, e choveu sobre as corcundas dos camelos sedentos do Saara, que eram, afinal, a porção de mercado almejada pela Garoto.

sexta-feira, maio 04, 2007



Querido blog,

(blog, blog, blog)

Hoje eu chorei feito um liqüidificador.

Obrigado.

terça-feira, abril 10, 2007

Kennedy não morreu


Lee Oswald / matou John Kennedy / ontem à tarde / de uma janela / num automóvel conversível / em Dallas, Texas / com dois tiros de um fuzil com mira telescópica / por motivo ainda não claramente estabelecido.

"Com base nas informações acima, escreva um lide e um sublide".

Ontem à tarde, em Dallas, Texas, o Presidente John Kennedy morreu com dois tiros de um fuzil com mira telescópica, disparados de uma janela por Lee Oswald. John Kennedy desfilava num automóvel conversível diante de uma multidão, quando caiu morto e sangrando, com o carro ainda em movimento. Jacqueline, sua mulher, que na ocasião trajava um vestido barato comprado em feira de antigüidades, entrou em desespero e engoliu quilos de serpentina.

Ontem à tarde, em Dallas, Texas, o Presidente John Kennedy morreu atingido por dois tiros de um fuzil com mira telescópica, disparados de uma janela por ninguém menos que Lee Oswald. Os motivos ainda não claramente se estabeleceram. John Kennedy desfilava num automóvel conversível diante de uma multidão em polvorosa quando caiu morto. Uma senhora idosa e minúscula, que viu a tudo de muito perto, disse apenas lembrar-se dos gritos ensandecidos da multidão. "Foi inesquecível", conta a senhora, saudosa, que agora tem, com certeza, uma história para contar aos bisnetos.

Na tarde de ontem, em Dallas, Texas, o Presidente John Kennedy morreu em uma janela atingido por dois tiros de um fuzil com mira telescópica, disparados de um automóvel conversível por - pasmem! - Lee Oswald. John Kennedy observava a paisagem urbana quando as balas o atingiram e ele despencou do 10º andar. O corpo foi visto no jardim do prédio, logo à entrada, quando um padeiro passou carregando farinha e fermento.

Por motivo ainda não claramente estabelecido, na tarde de ontem, em Dallas, Texas, o Presidente John Kennedy foi atingido da janela de seu conversível por dois tiros de um fuzil com mira telescópica, disparados pelo muitíssimo famigerado Lee Oswald. John Kennedy, todo engomado em seu carro de luxo, acenava para a multidão, trazendo-lhe iluminação e esclarecimento, quando caiu morto. O carro permaneceu em movimento, abrindo caminho pela turba encantada, enquanto o corpo do Presidente descansava incólume na janela do automóvel, pernas para dentro e tronco para fora da janela.

É, é possível ser criativo com a pirâmide invertida.

sexta-feira, abril 06, 2007

(Vi)ver [all I wanna do is... bycicle, bycicle)


Mamãe espalhava as jóias e os conjuntinhos no quarto arrumado e ia passear. O cômodo impregnado de perfume ficava levemente fora dos conformes, mas a fragrância tão maior não deixava transparecer as imperfeições da leve bagunça.
O sol nascia tímido e ia crescendo aos poucos, deixando o azul mais azul; pegava a bicicleta e percorria o mundo, as pessoas em fila comprando coisas, as velhas ricas fugindo da miséria que vinha de baixo a corroer o navio inteiro. Atravessava a tudo isto como uma seta sábia e rija que ia chegar ao outro mundo, mais com os limites dissolutos e por isso mais belo, mais vazio das aves ávidas que me vieram destruir.

E nadava com eles na água fria e nos beijos mornos de sábado. O rio olhava cúmplice e atento, desviado do entulho ao redor e sorrindo simpático à inocência que desflorava e não morria. Nascia em tais ocasiões, tanto como nos dias em que o barulho da música era alto e o ar cheirava inebriante, os braços dançavam pelo alto e tudo era muito, muito vazio de sentido; não havia por que encontrar razões.

Sustinha e guardava dentro a amizade que descobria com a maior das levezas da vida, experimentava o mundo novo e não cedia, não queria ver ruir o que era para sempre. Gritava as ordens confusas dos outros e distribuía armas secretas, mas com a intenção pouco animal de sentir a balbúrdia e a raiva vibrando na superfície da pele; era o momento único em que podia fugir para muito longe, protegido pela visão poderosa de criança, e desfrutar do viés novo com que pintava a situação.

Divulgava um universo mais saboroso que era possível e não queriam ver; que imensa agonia sentia das pessoas cegas e autocentradas!, que vida pouca levavam, e o planeta, tão maior, palpitando-lhes aos olhos, cheio de reentrâncias! E recebia em comunhão o brilho dos olhos alheios e dos dentes a sorrir, mas não das jóias de mamãe, agora bem pouco reluzentes.
Transitando entre as frestas proibidas, montava a bicicleta e ia viver, VIVER!, conhecia como ninguém o sabor renovador de sensações que, Deus, funcionavam. O chão era almofadado como nunca. O vento gostava de fazer cócegas no cabelo das mulheres e a relva fazia ver os grilos que cricrilavam. Algum olho de Deus, talvez o esquerdo, ou mesmo o direito, espiava atrás de uma nuvem grandiloqüente, cheia de si por ser quase divina, e sorria branca contra o fundo azul e estranhamente triste.

As crianças deixavam-se ser, a inocência era mais inocente e os dias nasciam com imenso frescor. E o pedalar ultrapassava a barreira imposta. E os conjuntinhos ainda cheiravam bons. E as pessoas permaneciam vivas na luta. E as faces gostavam de sorrir a todo mundo. E a luz resfolegou antes de a cortina cair por inteiro.

sexta-feira, março 09, 2007



No meio daquele calor estarrecido fazia um vento ocasional, meio com frescor de um dia novo, e eu via as carcaças escancaradas das pipas presas nos postes, como caveiras abertas ao azul do céu, como quem vê o prenúncio do apocalipse. Nos tempos doces de infância tirava os sapatos e ficava de pés nus no chão, sentindo o mundo devolver a vida que era minha, recebendo o sentimento que era dele. Como que carregando o fardo do pecado, repeti o ato, e foi bom. O azul era enorme e não me cansava.

sexta-feira, fevereiro 16, 2007

Você, que do outro lado do mundo se sentou na relva para tomar sol, sorriu como eu, aqui do outro lado


A beleza do mundo está no fato de eu esquentar a água para o chá, e, ao me virar, metade da água já ter desaparecido; se eu perco tempo em me perder nas escolhas das xícaras e dos sachês, então, a panela já estará seca. A beleza do mundo está em sentir cócegas ao menor dos toques, dar risadas e contorcer o corpo, e achar graça da risada de um bebê; querer rir junto. A beleza do mundo está também no calor do colo, do sono bom que vem em seguida, da preguiça gigante que vem com os carinhos amenos... O bonito do mundo é trocar o sorvete de menta pelo de açaí da Sorbê. Parece que para a beleza do mundo basta saber sentir; valorizá-lo. Você, que do outro lado do mundo se sentou na relva para cheirar as flores, sorriu como eu, aqui do outro lado.

Bonito mesmo é saber sorrir apesar de tudo.

quarta-feira, janeiro 24, 2007

Cappuccino


Cappuccino gelado dava-lhe gases de todo modo, mas ela continuava tomando mesmo assim, dane-se; embora não entendesse aquele hábito bizarro que a humanidade adquirira de beber leite dos outros (deixava o estômago todo pesado e moribundo, como era possível?), continuava não resistindo ao sabor mágico de um bom cappuccino cremoso, numa xícara assim num lugar assado; beber era um processo extra-estomacal, passava também pela percepção visual dos momentos.

A moça da cafeteria, que ficava no caixa, porque a outra que servia os clientes era horrorosa, andava rebolando as cadeiras e tinha o cabelo sempre preso pela mesma presilha de plástico. Ela poderia ser muito bonita, mas não era. Talvez se mudasse o penteado... enfim. Aquela era sua vida agora, precisava acostumar-se. Não tinha casa, nem família, estava expulsa de casa, excomungada, ex-virgem, ex-everything, teve vontade de esmurrar a garçonete, não havia chocolate suficiente no cappuccino, enfim. O telefone tocou e ela atendeu.

Alô? Sei. É, é... Sério, quando? Fala mais alto, não estou ouvindo. Aham... é, tô aqui, né... fazer o quê? É, eles viram. Ah, não sei, não quero pensar nisso agora. Não, não quero conversar. Não, Camila, não, por favor. Pelo amor de Deus. Não, escuta. Não. Sim. Eu não quero que você venha pra cá! Quero ficar só. Desculpa. Aham... tá. Tá, venha. Vou esperar lá fora.

A garçonete veio atrás, enquanto ela saía da loja, para dizer que não pagara a conta, mas ela dirigiu-se à garçonete munindo-se de gestos obscenos* e saiu do mesmo jeito. Lá fora, defronte das placas das lojas, que brilhavam em neon, viu que a da cafeteria era realmente bonita. Aí, teve uma idéia.

Teve uma idéia e correu para a vida nova que a aguardava. Camila que pagasse a conta.**


*certo, "dando dedo" seria mais fácil.
**final horrível, galera, foi mal.

segunda-feira, janeiro 15, 2007

O triste fim de...


(paisagens não sorriem, mas aquela lhe sorriu. ele retribuiu com o sorriso moribundo que lhe restava, e podia ficar para sempre ali, vendo, porque era bonito e melhor que amar)

O dia seguinte era um outro dia, ele estava cansado de andar e resolveu sentar apenas. Sentou e observou.

O que havia além daquelas duas lentes que eram seus olhos úmidos e pesados era um conjunto de símbolos a deduzir e desvendar. Munido do suspiro forte de ódio e ardor, sua última arma desde então, olhava para os outros sem querer que eles o olhassem. Vontade atendida: ninguém o viu morrer sozinho, ali mesmo, no meio do mundo inteiro, meu Deus; absolutamente ninguém viu. Estavam ocupados demais em lavar com água ensaboada os carros, as varandas, os cachorros e as mulheres. Dizem que, ao morrer, uma pessoa comum vê uma luz branca, redonda e apaziguadora rodando, rodando. Ele não era uma pessoa comum, e o que viu (além daquelas duas lentes que eram seus olhos úmidos e pesados, e agora tristes) era um verdadeiro turbilhão de luz branca, gigante, convulso, irrequieto, MEU DEUS!, era a pior coisa do mundo. Ele vai morrer em breve, sentado mesmo, mas ninguém sabe disso, então, psst!, segredo só nosso. O furacão de luz branca mostrou-lhe as coisas erradas que fizera em vida, e foram todas. Mostrou-lhe as coisas certas que poderia ter feito ao invés, e eram fáceis. Mostrou-lhe que poderia ter mudado o mundo, vencido as barreiras, chegado em primeiro, quebrado paradigmas, mostrou-lhe que era um super-herói que morreu sentado.

Ele morreu sentado, ali mesmo, na frente dos olhos dos outros, e ninguém sabe por quê, porque ninguém viu.