sexta-feira, abril 28, 2006

No chão do meu banheiro

No chão do meu banheiro aconteceu cena das mais dramáticas. Na borda do tapete já encardido, perdidas na imensidão lisa do azulejo frio, duas formigas esbarravam perigosamente na linha que separa a vida da morte. Ou melhor, uma já estava morta. A outra é que não sabia o que fazer com o cadáver que a perturbava; pobrezinha, percorria o azulejo inteiro numa velocidade que eu nunca vi em formigas, desesperada, e pegava o corpo morto da outra, trazia mais para perto do outro azulejo, depois voltava, e ia de novo. Talvez chamasse por mais outras, mas ninguém veio. Devia estar roída por dentro, toda envolta na dor da perda.

Tão humanas, as formigas. E nós, tão elas.

sábado, abril 22, 2006

Os dias


Há as noites, as tardes, e há os dias. Dias em que se procura apenas o conforto repousante nas paredes frias. Dias em que há ninguém para você, apenas você, o piso e o céu, mas eles não são o apoio que você procura, porque estão longe demais, e você está pequeno. É tudo escuro e bem difícil, um bicho vivo, frio e escorregadio. Com tentáculos que têm ventosas. E há as estrelas, ah, as estrelas, tão pouco coesas quanto as gracinhas da minha mãe, "Que foi?, um mosquito que engoliu um boi?", que me matavam de rir quando eu era criança. É tudo tão bom e inocente na infância. Mas não agora, porque há as noites, as tardes e os dias.

E há as pessoas, que aparecem com um sorriso bom, e salvam os dias.

quarta-feira, abril 12, 2006

Baratinha quando morre se arrasta pelo chão...



Era praticamente uma ET. Estava quase morta. Já estava pseudomorta, arrastando-se sem vida, a ET, a barata. Suas patas tortas e trôpegas embaralhavam-se na ânsia absurda por um pouco da vida que lhe estava sendo negada, percorrendo o chão que seria seu túmulo. Ela, a barata, era o que era e o que não era, era barata e aranha, pelos 8.000 pés que se lhe formavam, era barata e lagartixa, quando subiu pela parede de azuis azulejos. Perseguiu-me, a barata, e fugiu de mim. À hora oficial de sua morte, já eu não estava mais lá.

Quando vejo baratas, dá-me uma vontade bruta de ler Clarice Lispector*.

*por causa de A Paixão Segundo GH etc.