quinta-feira, fevereiro 28, 2008

Nouvelle vague

"Que bom que você demorou".
"Ah, é? Por quê?"
"Porque aí eu não precisei me preocupar com um engarrafamento demoníaco mais para trás, nem com a chuva (as pessoas já não sabem dirigir sem chuva, com chuva menos ainda), e nem com esses desvios que a polícia fez por causa das obras nas pistas. Aqueles cones só atrapalham o trânsito. Sabia que eu já derrubei alguns? E essa calça rasgada no joelho, de onde você tirou isso?"
"Então, eu usei só uma vez quando fui à fazenda dos avôs da Rê, e todo mundo achou estranho. Eu vou usar agora por causa da homenagem e tudo o mais, aquele foi um momento legal e foi o único dia em que os outros me viram com a calça, é claro que a Priscilla vai achar estranho, mas..."
"Espera, deixa eu trocar o CD"
"... mas, ah, tá. Diminui um pouco, tá alto. Pronto. Você viu que aquele cara perdeu 25% da audição depois de passar um tempão ouvindo música alta com fones de ouvido? Meu, 25% é muita coisa. Muita coisa".
"É mesmo? Não fiquei sabendo disso não..."
"Mas enfim. Eu também trouxe um cabo extra e pilhas de reserva, porque eu lembrei aquela vez que você reclamou das pilhas viciadas da sua câmera, hahaha, foi tão engraçado! Ei, cuidado, aquele gato vai atravessar".
"Por que diabos as pessoas não adotam logo esses bichos em vez de comprar? Outro dia eu fui para a yoga e tinha um gato esmagado no asfalto como se fosse um papel, entendeu? Ele era preto. Dava pra ver o formato do corpo direitinho... Só que do seu crânio amassado saía um líquido amarelo supernojento que ia escorrendo assim pela rua..."
"Eeeeco! Ainda bem que eu não vi iss..."
"É aqui?"
"É, pode virar aqui, vira aqui. Aí você dá seta e desce por essa rua (pode ir de segunda marcha). Freia! Pronto. Agora reto, e você entra no estacionamento do McDonald's".
"Mas eu não sei onde é, não é melhor eu..."
"Não, ó, vira ali onde aquele carro virou".
"Tá. Pronto, chegamos. Gostou da carona?"
"Gostei. Obrigado por me aturar".
"Nada, 'aturar' você é o que me deixa mais feliz".

quinta-feira, fevereiro 14, 2008

That Time

Lembra aquela época em que eu achei uns dentes de ser humano no quintal? Eu vinha fumando Marlboros e Carltons e você me perguntava por que essas marcas têm nomes com L e R juntos, e me mandava apagar os cigarros, aí me dava mexericas em caixa para esconder o hálito; o cheiro ácido espalhava-se pela casa. Lembra aquela época em que queríamos escrever e montamos um blog que não tinha a menor lógica de formatação? Lembra aquela época em que eu só lia os rótulos de sucrilhos e você só lia as coleções de livros de coleções? Mamãe me enchia o saco por eu me encher de tantos sucrilhos. Onde estará mamãe agora?

Lembra aquela época em que eu morria de rir por coisas bobas e você me recriminava com chantagens? Eu deitava no tapete e a gente brincava de ouvir o começo das músicas e adivinhar os cantores. Em seguida procurávamos nomes estranhos na internet e tentávamos adivinhar a origem de cada um, o país, a etnia e a cultura que evocavam. Víamos fotos, e as melhores colávamos no Paint, e bagunçávamos tudo. Lembra depois quando eu tentei salvar um passarinho manco, mas ele morreu minutos depois, por não conseguir voar? Você tentou me consolar, dizendo que assim nenhum gato de rua iria comê-lo. Lembra quando minhas cores preferidas eram vinho com azul-piscina, e as suas preto e branco? Lembra quando montamos uma horta que deu errado, mas depois plantamos begônias e elas nasceram lindamente? Lembra quando eu plantei meu primeiro dente-de-leão sobre seu túmulo, em memória à época em que soprávamos dente-de-leão no parquinho?

Onde estará você agora?


1. baseado em música de Regina Spektor de título homônimo
2. as músicas dela são muito boas pra escrever essas coisas.

quinta-feira, fevereiro 07, 2008

De volta da Grande Guerra


Na tarde passada, um cadáver chegou para o chá.

Partira há muito para a Grande Guerra e desde então não ouvíamos falar nele. Era o melhor vizinho do bairro, o mais exemplar, cavalheiro, educado. Gostava de agradar as crianças dando-lhes doces, e agradava as mulheres dando-lhes rosas.

Décadas após a Grande Guerra, quando a mansão do velho Kenneth - o vizinho - já era uma creche para crianças pouco educadas, eu saí para cuidar do jardim e achar minhocas na areia, que eu provava ocasionalmente e achava boa. Nada como colheradas generosas e obscenas daquela areia provocante. Aí, encontrei Kenneth lá no fundo. Cinza, seco, com uns poucos tufos de cabelo frágil no crânio sem pele. Estranhamente bonito. Kenneth usava seu terno desbotado e recendendo a vinagre, o mesmo terno que ele usava para passear e o mesmo que ele usara no dia em que fora à guerra.

Kenneth!, exclamei feliz. Nunca imaginaria encontrá-lo ali. Escondendo-se das belas donzelas, seu safado? Ah, venha cá me dar um abraço!, e abracei Kenneth. Seus ossos sob o paletó estalaram afoitamente. Kenneth, o que houve com suas pernas? Onde estão? Deixou-as lá, para uma vida mais prática? Quanta genialidade!

Kenneth exalava genialidade enquanto eu o levava até minha casa velha e vazia. Enquanto todos fraquejavam contra o frio, eu pus a cama na varanda. Eu pus Kenneth sobre a cadeira, sustentando-o com um graveto para que não caísse, mas que perfurou seu olho. E aí, Kenneth, chá ou café? Manejei o bule de café até a xícara mais próxima de Kenneth, mas estava pesado, eu estava sem força, e o café caiu nos dedos ressequidos do velho, e sua mão derreteu. Desculpe, Kenneth. Então, cara, o que você conta? Como foi lá? Kenneth? Por que você está tão quieto? Kenneth estava quieto, absurdamente. Tudo bem, vou buscar uns biscoitos, não saia daí!

Mas Kenneth saiu. Voltando, não o encontrei lá.

(baseado no vídeo Salad Fingers 7, por David Firth)

domingo, fevereiro 03, 2008

...seria uma abelha?

No andar de baixo, a empregada martelava a carne com tanta força que logo ficaria musculosa. Já era o prelúdio do que seria o almoço, e eram 3h da manhã. No andar de cima, um fiapo de cabelo no chão do banheiro parecia o esboço de um cavalo-marinho, ou o que seria o começo de sua espinha dorsal, se alguém estivesse desenhando. Mas naquele andar os três adolescentes foram perturbados por um zumbido profundo que crescia esporadicamente e minguava logo após, como o de uma abelha gigante e monstruosa que os viera rondar assustadoramente. As árvores que enfeitavam a cobertura farfalhavam loucamente, quase esquecidas por causa de uma névoa muito densa que descera sobre a cidade. Além disso ventava, e as cortinas dançavam com ousadia escandalosa. O zumbido esquisito, mais as árvores, a névoa, o vento e as cortinas compunham cenas sórdidas entre as quais os adolescentes tiveram de se virar. As horas passaram e muitas conversas vieram, entre as quais alguma coisa sobre mães protetoras, o desaparecimento da timidez emparelhada com a auto-aceitação, e Paprika. Mas o barulhinho atazanante permanecia incólume. Alguém lembrou, para si mesmo, um comentário longínquo sobre zumbidos de ETs e cabeças que explodiam. Eles foram obrigados a enfrentar seus medos, como naquelas fitas de meditação que recomendam "pense num lindo jardim primaveril. deixe seus medos...". Munidos de almofadas, desceram as escadas e suprimiram diversos gritos silenciosos, que explodiam na garganta e morriam na boca como um engasgo, porque a cidade inteira dormia e acordá-la com um grito medroso seria um erro. De modo que desembocaram na sala vibrando de emoção, os corpos contorcidos por dentro, todos aqueles berros contidos... acenderam as luzes e não viram nada. As coisas estavam em seus devidos lugares; tudo parecia respirar placidamente. Eles poderiam descansar tranqüilos.

No entanto a memória do zumbido permanecia viva em suas orelhas.