quinta-feira, novembro 15, 2007

Meu nome é Peralta


Peralta chega sempre pela manhã ao estabelecimento de portinholas verdes. Fica à porta, vigilante, como dono do estabelecimento, e rosna para os que chegam perto, com as mãos estendidas para fazer carinho. Peralta não gosta mesmo desse tipo de aproximação: é um cachorro frio, que ouve a mulher repreendê-lo pelo nome e logo pára de rosnar. No entanto, continua desconfiado, olhando a rua meio de soslaio, e movendo o focinho como quem aspira o cheiro dos estranhos. A coleira vermelha é para que ninguém o maltrate por aí: em Corumbá, como deve ser em outras dessas cidades pequenas, os cachorros têm donos, mas não têm teto: sua casa são as ruas. Saem por aí, e às vezes voltam. Quando não voltam, o dono pode ficar tranqüilo, porque é provável que os cachorros estejam apenas a algumas ruas de distância, fazendo charme na praça da Matriz, mendigando comida na frente das pousadas ou vadiando com outros cachorros. O máximo a que chegam é fazer filhotes. Como têm vida fácil, podem abandonar a cadela e voltar para a guarda de suas portinholas; a cadela que se vire com as crias, que, muito provável, vão fugir da mãe, latir para os turistas, vagabundear mais ainda pelas ruas etc.

Peralta, não. Peralta é um cão de classe e não se mistura com essa gentalha: com seu gingado especial, por causa de suas patas tortas, que imitam um coração, ele vaga sozinho pelas noites, volta durante o dia para guardar fielmente o estabelecimento da dona, e rosna apenas para os turistas que vêm incomodá-lo. Secretamente, porém, deve manter um enorme orgulho – o de saber posar para fotos.

quinta-feira, novembro 08, 2007

A família do Brasil

Estação de reciclagem corumbaense: administração negligente da prefeitura não deu prosseguimento a iniciativa privada.

A família de José Geraldo da Silva mora depois de uma imensa antena que, olhando do centro de Corumbá (GO), parece ficar muito longe da cidade. Em todo o terreno repleto de animais diversos e duas casas onde moram muitas pessoas, um quadro de Santo Expedito (o das causas impossíveis) fica sozinho em uma parede de tijolos, ao lado de outra onde se estendem dois violões. O primeiro a abrir o portão é um menino pequeno, de olhos assustados e boca suja do que parece ser chocolate. Logo depois, Nelci Lopes, a mãe, aparece e segue rumo à primeira casa, entrando num quarto com janela. Pára ali mesmo e olha para fora, deixando o sol iluminar-lhe a face e os cabelos castigados. Ela e o marido são os únicos catadores que ainda trabalham no lixão de Corumbá. Fazem o serviço há 11 anos, com ajuda esporádica de apenas um de seus filhos: os menores de idade ainda estudam, outros já cresceram e trabalham. Ao todo são nove. "A gente sabe que estudar é importante", dizem. Conseguem, por mês, 900 reais. Com o dinheiro arrecadado, adquiriram três carroças diferentes: uma específica para o trabalho, e as outras para passeios e eventualidades. O casal é tão íntimo do emprego que possui a chave do lixão, doada pela prefeitura. Como são quase os donos do lugar, sabem de tudo sobre as redondezas, inclusive sobre a estação de reciclagem, construída por uma empresa privada, mas que não entrou em funcionamento por falta de incentivo municipal. A estação foi logo saqueada, e, hoje, resta apenas a carcaça depredada: ao lado de uma árvore, a casa permanece silenciosa, sem telhas ou portas, deixando a luz solar criar sombras tristes no chão de concreto. A prefeitura também já proibiu o trabalho dos dois catadores, por questões de saúde e segurança, mas eles contam que, na época, faziam o serviço à noite, longe da fiscalização do município. O filho mais velho, José Carlos, já cortou o pé trabalhando no lixão, aos 9 anos, já que somente o casal possui botas e luvas protetoras. Na época, José Geraldo, o pai, viu-se obrigado a levar o menino para o hospital público. O tratamento da ferida custou-lhe, mesmo assim, 70 reais. Sobre o pagamento contraditório com o qual teve de arcar no hospital, ele reclama: "Prefeito em Corumbá não tem, não. Pra ajudar, não. Só pra atrapalhar". Hoje, o filho José Carlos, 16, dono de um semblante maduro para a idade, trabalha numa das muitas colheitas de tomate, que têm crescido na região devido à grande demanda pelos produtos em Brasília e São Paulo. O rapaz, que já freqüentou escola e diz gostar de estudar, parou de ir ao colégio por falta de transporte: havia ônibus apenas para ida, nunca para volta. Para ele, voltar a pé era muito incômodo, e, se hoje consegue trabalhar na colheita, é porque existe transporte ida-e-volta.

Fora da casa, os animais parecem se entender. Algumas vacas de fazendeiros vizinhos chegam muito perto da cerca, para experimentar das cascas secas de milho que revestem o chão. Os cachorros não se deixam intimidar pela presença afoita das crianças pequenas, e vice-versa. José Geraldo conta, com entusiasmo, que conseguirá tijolos de alguma fábrica da região para construir uma nova área ali fora, com um fogão a lenha onde fará o próprio café. "Vocês vão voltar em breve? Quando vocês voltarem a Corumbá, podem vir tomar café com a gente", e continua a discorrer sobre seus planos. É aí que um dos filhos, aquele que abrira o portão, chega perto da cerca e vai conversar com José Carlos. As vacas, ariscas, assustam-se e descem rápido o declive, como num trote. Entre uma história e outra, os catadores parecem perder-se no tempo e na própria idade, que eles não sabem ao certo. Sabem que José nasceu em 1955, e que a mulher é quatro anos mais jovem. "Façam as contas", José Geraldo sorri, com timidez na face repleta de rugas. De qualquer forma, não parecem se importar muito com a idade que não sabem calcular, porque Nelci Lopes logo sai de casa e vai se juntar ao resto da família, suas sobrinhas, que observam a tudo num canto afastado. "Ave Maria! Meu terreno tá uma bagunça!". Calma, Nelci, porque Corumbá de Goiás, o município sem prefeito, também está uma bagunça. É difícil entender como a família de catadores resiste com humor e hospitalidade a uma administração negligente – talvez o quadro de Santo Expedito sirva de explicação.