quarta-feira, março 03, 2010

alto retrato

(não é um autorretrato; está mais para uma provável descrição de algo que poderia vir a ser. é completamente da ordem da possibilidade)

Lê muito, porque gosta e carrega esse prazer desde a infância, prazer que virou um senso de obrigação muito forte e só se sacia à noite, depois de umas páginas viradas. Faz pouco a barba e pensa muito nas coisas futuras, e diz pouco, o que lhe custa às vezes remoer por dentro e envelhecer uns cabelos que lhe vão caindo, caindo, caindo. Planta raízes nas pessoas, conhece-as em semanas e anos depois ainda se lembra delas, o que significa que é emotivo, sensível, passional. Honesto e puro não é, o maior alvo de suas mentiras é a mãe, mas os psicólogos diriam que é um mecanismo de defesa, jornada do ser para se manter em privacidade. Em suas caminhadas solitárias, a pé ou dentro do carro mesmo, porque é muito solitário a maior parte do tempo, gosta de arrancar as folhas dos arbustos e sentir o cheiro de agrião que sai deles. Arranca também as pétalas do pensamento, uma a uma, até que a corola fique nua, exposta e frágil, o núcleo de tantos tormentos. Dói muito por dentro por pensar em muitas coisas ao mesmo tempo, mas gostaria de pensar sempre mais. Está sempre descobrindo uma palavra nova, ou então formando palavras que não existem (e melhor ainda é quando inventa palavras que já existem). De um modo ou de outro, estanca e repete a palavra nova baixinho, saboreando cada sílaba. É quando passa através do vento e retoma os ares.