quinta-feira, abril 24, 2008

Carta de amor

Meu bem,

Há três dias aquele caroço de alguma-coisa jaz no chão do banheiro. Aquilo parece uma barata. Eu entro no banheiro, e, mesmo antes de acender as luzes, vejo o troço no chão e acho que é uma barata. Sempre levo um susto. Você ia gostar se eu deixasse uma azeitona preta dentro da sua caneca preferida e você achasse que era um cocô de bode? Por que você não tirou o negócio de lá ainda? Isso é típico seu: sair pela casa espalhando as coisas como se elas fossem perfume, por mais horrendas que sejam.

Outro dia cheguei tarde e você ainda não tinha dado um jeito nas toalhas molhadas. Você sai do banho, usa todas as toalhas disponíveis e joga tudo no chão! Emboladas, ainda por cima. Você podia pelo menos estendê-las no chão, pra secar mais rápido. Mas NÃO! Eu chego e elas estão úmidas. O pior é que eu sempre acho que elas estão úmidas de suor, porque você aprendeu com aquela sapa da sua mãe a enxugar a testa toda hora com qualquer toalha que aparece na frente. Credo!

Um último lembrete: tem suco de uva na geladeira, daquele que você gosta. Eu comprei. Mas peloamordeDeus não vá fazer baderna na cozinha, porque você adora abrir os sucos e, sem óculos, por causa dessa miopia idiota, você sai pingando metade da garrafa no chão, sendo que a Raimunda acabou de encerar o porcelanato. Tem biscoito também, mas não come tudo porque eu quero experimentar!

Nos vemos mais tarde, deixe a casa em ordem,
beijo.

quarta-feira, abril 16, 2008

Neurose como necrose

Vocês maldisseram o próprio nome e afundaram no egoísmo. Vocês pegaram a carne de suas carnes e engoliram-na palpitante, e derramaram seu sangue no chão. Vocês confundiram amor com miséria e julgaram os outros. Interpuseram obstáculos onde não os havia, e erraram fatalmente ao tolhir a própria liberdade. Vocês desfizeram os quebra-cabeças e andaram para trás; retrógrados!, vocês se extinguiram pouco a pouco. Vocês não enxergam a liberdade porque estiveram cegos desde sempre; admirar a luz verdadeira lhes custará os olhos. Vocês estão confusos. Ah, a aprendizagem será dolorosa, difícil, e lhes comerá a pele lentamente, como a pior das torturas. Porque vocês procuraram intensamente a Deus, mas só acharam a dor, a tristeza e a morte.

quinta-feira, abril 03, 2008

As fotos de Carlota

Alojada logo abaixo da janela, Carlota desviava a cara feia da luz inclinada, alaranjada e quente, bonita, mas quente; preferia ficar ali a fugir totalmente do calor, porque era ali que podia se redimir, chorando à vontade. Pegou o pequeno baú verde e envelhecido, lotado das coisas dignas de se guardar em baús, como um refugo de memórias assustadas que devem ser esquecidas, mas para Carlota funcionava como uma catarse por meio do passado. Abriu o caixote e olhou as fotos sépias, carcomidas, algumas meio queimadas, mas quase invencíveis ao tempo, porque Carlota até podia morrer, mas as fotografias ficariam para sempre. Olhou uma a uma, seguindo o ritual semanal, e como sempre tudo começou com um tremor sutil, depois a mão resfolegou e quase tombou o baú; primeiro a mãe, o pai, a avó, o avô, os filhos, o marido, todas as pessoas que já estiveram com ela, e que agora caíam para os véus da eternidade, e Carlota foi acometida de tremeliques violentos que lhe sacudiam o penteado horroroso, o batom escandalosamente vermelho borrou ao prenúncio de um gemido, o nariz fungou com um barulho que os vizinhos gostariam de evitar, e as lágrimas respingaram enfim como um gozo quente e descontrolado, escorrendo pela janela e evaporando ao encontro cálido com a luz inclinada.

Até que Carlota parou de tremer e suas tristezas equivocadamente solitárias voltaram ao pó.