segunda-feira, dezembro 14, 2009

Aipo

(ah, é mesmo, eu tenho um blog)



A reunião começou muito bem, obrigado. A convidada da noite chegou trajando roupas que eram um nojo de ver: luvas de pelica, botas, meia-calça, brincos anéis e pulseiras, sapato de salto e um casaco de pele caríssimo que ela comprou no Canadá. A anfitriã a recebeu esquadrinhando aquele casaco, que a convidada arremessou em cima da mesa, sentando-se aparentando cansaço. A anfitriã ordenou que as empregadas servissem a ceia, mas fez questão de manter o casaco sobre a mesa.

- Bonito, seu casaco, disse a anfitriã, alisando-o.

- É de pele de esquilo, anunciou orgulhosa a convidada, retirando as luvas e examinando o brilho dos talheres. - Dizem que o brilho dos talheres é um sinal de status, poder e glória. Quanto mais brilho, mais luxo.

- Pele de esquilo?, continuou a outra, pensando em quantos esquilos teriam sido necessários para a confecção daquela peça valorisadíssima. Quantas árvores ocas teriam sido deixas naquele inverno, quantos amendoins sobrando no estoque, quantos parques vazios e despovoados, quantas crianças solitárias. O forro do casaco era supermacio e ela o acariciava mirando um ponto da mesa, perdida, como se afagasse a alma reverberante daqueles animais, que na memória da cultura ainda pulavam de galho em galho. Além disso, estava enfastiada porque havia comido uma manga no café da manhã e estava entrevada no intestino, produzindo gases e cheia de odores, o que a fazia endireitar a coluna e parecer muito séria, fina e acadêmica, como quem coloca Clarice Lispector na cabeceira e sofre de dores de cabeça tortuosas.

- Você é tão fina, comentou a convidada, tomando a sopa de entrada, que era um mexidão de batata baroa, mandioca, ervilha e aipo. - A sopa poderia ser boa, se não fosse esse aipo, mas, sabe, curti.

- Minhas empregadas não sabem fazer um aipo bom, retrucou a anfitriã, segurando com força a pele do casaco como se agarrasse o cabelo de um bandido. - Elas não sabem lavar, cortar, cozinhar... aipo é um mistério para elas - A convidada bocejou. - O aipo é um mistério da natureza. Exige cuidado, amor e dedicação. Tem que lavar em água de cheiro e cozinhar durante milênios, com muita paciência. Mas elas fazem com a bunda, e dá nisso.

A convidada pestanejou. - Q? Amiga, tem um pentelho na minha sopa.

- Se vira, ninguém mandou você trazer esse bando de esquilo pra dentro da minha casa, sua vaca.

- Sai daqui!

- SAI DAKI VC PORQUE AQUI EH A MINHA CASA, SUA LOK

A convidada foi expulsa com vassouradas, ainda com restos de aipo na boca, um hálito terrível. O casaco de pele acabou pendurado em um galho, no meio de um bosque, para que a natureza se lembrasse de como é sofrer nas mãos da indústria da moda.

quinta-feira, novembro 05, 2009

Meu primeiro toco


É o que sempre disse: gente bonzinha só se *. Eu não deveria ter aceitado seu convite para uma conversa, não deveria ter começado com aquele email. Você soube arquitetar a conversa muito bem e eu nunca imaginei que a evasão custasse tanto jogo de cintura. Mas eu poderia ter aceitado, pelo gosto culposo da aventura. Poderíamos fingir que nos esbarramos lá por acaso. Entraríamos na mesma sala, e você gripado fungaria como uma porca enjaulada, o frio do ar-condicionado descendo espiralado como um perfume envenenado, querendo que nos agarrássemos. Agarraríamo-nos com as mãos, apenas, sua mão quente aquecendo a minha. Visualizaríamos essa cena em plano-detalhe, como um dos muitos planos-detalhes que transbordam nesse filme do Quebec, e como é impossível entender o sotaque do Quebec. Seria somente nesse ponto, porém, banhado pela luz da tela, que eu poderia perceber: nada disso aconteceu, eu não aceitei, eu recusei depois de muito pensar e o que me levou a sentar sozinho naquela sala foi o fato de eu ter dado meu primeiro toco.

terça-feira, novembro 03, 2009

Percebi

Eu percebi que você está me olhando, percebi sim. Não adianta fingir discrição, não adianta revezarmos os olhares, eu sei que você está me olhando e você sabe que eu estou correspondendo. Então vamos juntos voltar de Nárnia, vamos fingir que não há ninguém aqui e sair rolando por essas esteiras. Vou começar lambendo sua garganta, passar pela cabeça e ir descendo pelas costas suadas, porque sua camiseta grudou na pele e eu consigo enxergar os músculos com seus volumes e movimentos, a transpiração, vou rasgar todo esse tecido e guardá-lo para mim, vou apalpá-lo como se não houvesse amanhã, vamos aproveitar que ainda há tempo e que eu percebi.

sexta-feira, setembro 25, 2009

Barulho de água

A lanchonete era velha, e havia ali muitos sinais que indicavam isso: a cerâmica anos 60, os copos americanos de vidro, as garrafas retornáveis, a televisão velha, os cabelos no ralo da pia e as manchas de gordura no teto acima dela, grandes manchas amareladas que iam grudando, grudando e já eram testemunhas vivas da história.

A lanchonete fazia-se ouvir bem de longe, e talvez aí encontravam-se os indícios mais óbvios do seu envelhecimento. Bastava ligar uma torneira ali dentro e um barulho de sucção vinha subindo pelos canos, chamando pela água; o ruído ia crescendo e crescendo, assomando como o suspiro, ou melhor, o grito, dos fantasmas das pessoas que já haviam pisado ali. Demorava até a água chegar, e, quando chegava, era com estremecimento e alarde. Fazia as paredes estremecerem, o chão, as estantes, os copos, os talheres, as pessoas, era uma loucura que obrigava a torneira ser desligada logo depois, só dava tempo de enxaguar um copo. E aí era preciso abrir a torneira de novo e ouvir os gritos de novo, e depois estremecer, fazendo a gente longe dali olhar para trás.

terça-feira, setembro 22, 2009

Voltar ao início

Essa coisa que vem crescendo no peito não é o que chamam de dúvida, é mais uma certeza acompanhada de uma pergunta sobre o que virá depois, mas é difícil termos certezas, o próprio mundo se encarrega de nos mostrar que elas são extremamente falíveis. De modo que é melhor dizer apenas que alguma coisa cresce, e assim voltamos ao início.

O que nos resta é a sensação de que não podemos pisar nada além da própria terra, que precisamos valorizar apenas isto que é o agora, e que inevitavelmente as coisas vão se desmanchando pelo ar como falecem as pessoas...

quarta-feira, setembro 02, 2009

O acaso existe

O que há de brilhante na obra deste homem é não só ter elaborado uma teoria sobre a mais fundamental e básica faculdade humana - o pensamento -, mas ter dado, a todos os que conhecem seus escritos, a oportunidade de encarar algo que poucos querem encarar: o acaso. O que Charles Peirce nos ensina em sua semiótica - a ciência geral dos signos - é que não podemos escapar do acaso; que ele, como signo, é bruto e físico, e responsável pelo começo de uma cadeia que é o próprio pensamento. Ele nos mostra que estamos sujeitos a todo tipo de eventualidade, e que ela nos leva a outros lugares.

Que não há conhecimento certo ou seguro, e que este deve ser analisado à luz dos fatos externos. Que é só tropeçando na eventualidade do real que experimentamos algo distinto de nossas expectativas. Que não podemos escapar à presença invariável da mudança. Que o homem, como signo, é um processo; não pode ter um sentido em si mesmo, isolado, pronto, se não estiver dirigido a outro signo; não se pode precisar seu começo ou seu fim, não pode estar "acabado", não pode ter uma história escrita nos Livros, no céu ou nas estrelas, não está destinado a ir a lugar algum. O que Peirce arremessa diante de nós é a dura verdade de que as coisas nos escapam, de que podemos ser extremamente falíveis. Ele nos põe diante da indeterminação, da incerteza, e do provisório.

Talvez por isso ele tenha sido tão incompreendido - e, também, impopular.

quinta-feira, agosto 13, 2009

No paraíso de Borges

"Siempre imaginé que el paraíso sería algún tipo de biblioteca".
- Jorge Luís Borges


Sonhei que me correspondia com alguém pelos livros. Tudo começou quando retirei da biblioteca uma meia dúzia de livros, como sempre faço, e, numa deitada só, li trechos de pelo menos quatro deles. Como não há marcadores de páginas suficientes, peguei vários papéis que havia ali pelo quarto para marcar os livros e "salvar" a leitura, como fazemos com jogos de videogame muito longos, e um desses marcadores só poderiam ser antigas cartas de amor, bilhetes do colégio, pedaços de fotografias, e o resultado do meu exame mais recente de fezes. Alguns livros precisavam de mais de um marcador, porque são muitas referências, termos novos, nomes de autores e dúvidas que afloram a cada parágrafo - não custa nada ir e voltar, percorrendo o mesmo caminho sempre, mas sempre com novos olhares, com nos ensina Umberto Eco (ou não. rs).

Rigorosamente no último dia de empréstimo, porque não gosto de pagar multas, voltei à biblioteca para renovar os livros e tive que devolver um deles, solicitado por outra pessoa para reserva. Devolvi, relutante. Foram dias e dias para reencontrá-lo na biblioteca; voltava sempre às prateleiras e ele não estava lá. Semanas depois, procurando outros volumes, descobri que era só olhar um pouco mais para o lado e descobrir que o livro estava, afinal, por ali perto. Eles nunca são devolvidos exatamente ao seu lugar original, ou talvez sejam: a biblioteca é como um enorme monstro vivo cujos órgãos são os livros que se remexem para lá e para cá. Mesmo que se procure muito e nada se encontre, não há por que desistir. Os volumes sempre estão lá, mais para a esquerda.

Novamente em posse do livro que forçosamente devolvera, agora acompanhado de outros volumes, folheei-o como de costume. Da outra vez que fiz isso, em outro livro, encontrei um cartão postal todo rabiscado de hidrocor preta; os rabiscos às vezes formavam palavras em italiano ou espanhol. Desta vez reencontrei, não sem muito embaraço, o resultado do meu exame de fezes. Minhas cartas de amor, meus pedaços de fotografia e os bilhetinhos de colégio haviam sumido todos, talvez raptados pela pessoa que reservara o livro. Não há muito o que ser feito, pensei acordando. As bibliotecas são mesmo feitas de livros e os livros são mesmo feitos da gente.

quinta-feira, julho 23, 2009

Da criação do Universo e das eras

Havia Deus na era dos dinossauros?

No começo era o pó, o frio e a escuridão. Um silêncio de dar tédio. Foi então que Deus manejou com um grande braço seus escuros materiais, levando-os à borda do infinito a fim de dar a ele uma finitude, querendo criar um vendaval que, enfim, criou-se. Foi a invenção do Big Bang. Dele vieram galáxias dentro de galáxias, estrelas que explodiam, Sóis quentes e gelados que atraíam planetas para si e faziam tudo equilibrar numa complicada equação de forças e calores.

Havia ali no meio um planeta que as escrituras bem descreveram e do qual Deus quis ele mesmo, pessoalmente, encarregar-se. Chamava-se Terra e a obra começou quando ele dividiu o nada em duas partes, formando o céu e o chão onde iam pisar todas as mortais criaturas; no entanto a divisória ficou imperfeita e daí surgiram montanhas e vales grandiosos. "Não era para ser assim, mas está bom", disse Deus. Então Ele desenhou na superfície da Terra e daí nasceram a grama e as árvores, as plantas com seus frutos e os animais. As coisas eram tão bonitas e boas em si mesmas que não dependiam de mais ninguém para existir, nem mesmo Dele.

No último dia de criação, Deus fez pequenas criaturas que eram em sua imagem e semelhança como ele, portanto cheias de imperfeições. Deus ficou insatisfeito e guardou as criaturas em uma de suas gavetas. Tomado de exaustão, Deus dormiu e a Terra recém-criada pôde desenvolver-se; e as plantas e os animais cresceram e se tornaram coisas que ninguém sabe o que eram porque ninguém viu. Apenas uma delas tornou-se conhecida, eram os dinossauros e dominavam os céus, o chão e as águas; eram ferozes, gigantescos e em sua maioria velozes, e foi por sua astúcia que dominaram o planeta. No entanto tinham um cérebro pequeno e não se questionavam, não sentiam emoções e não se comunicavam senão por gritos horrendos e grunhidos de fome, não se perguntavam sobre a criação e sobre Deus, que dormia.

Até que um dia, Deus acordou e verificou que os dinossauros nada faziam; eles não mudavam porque não se questionavam, não afrontavam Sua existência e pareciam sempre satisfeitos. Foi aí que Deus quis recomeçar tudo, e tudo destruiu com um cometa que se chocou contra a Terra, fazendo as coisas virarem fumaça. Antes de redesenhá-las, porém, Deus cochilou novamente, mas se levantou rápido e, quando viu, as criaturas semelhantes a ele, que estavam presas na gaveta, de um modo conseguiram escapar e já estavam lá embaixo na Terra, decididas a povoar a Criação.

Deus, que até então era tolerante com os erros, deixou as criaturas viverem no mundo, e viu que essas sim questionavam-se, sofriam, riam e choravam, e pareciam querer transformar as coisas porque havia algo que lhes era intrínseco e se chamava inteligência. Deus viu que não era mais necessário fazer nada por ali, e foi criar outros mundos.

baseado no anime haibane renmei

sábado, julho 04, 2009

Reservado

"Você é tão reservado".

A frase veio com tom de reprovação, como que proferida em hora e local indevidos, como que embasada num julgamento, num juízo de valor. Quase equivalente a um "você é tão esquisito". O sol das 17 horas banhava os degraus de um amarelo aconchegante, cálido, mas que naquele momento destoou completamente e pareceu até repulsivo. Balbuciei uma explicação que não saiu. Não há por que explicar-se, não há como fazê-lo; simplesmente é e pronto. Não vejo problemas em analisar as linhas da mão, as veias saltadas, as rugas dos outros, os motoristas em outros carros, os pássaros em suas árvores; não vejo problemas em pensar, pensar e pensar imergindo num fluxo tão grande de palavras e coisas que só me resta o silêncio para aquietar tudo isso. Não vejo por que não contemplar os passos nesses degraus banhados d'ouro, não vejo por que não olhar para trás e pensar "puxa, o sol das 17h é tão bonito", depois virar para frente e pensar que o silêncio é tão cheio de ideias.

"Você é tão reservado".

quinta-feira, junho 25, 2009

Uma desculpa para não ir

Colegas,

Venho por meio deste justificar minha ausência na festa junina da CORDI. Eu _juro_ que estava indo para a festa, mas aí apareceu uma cratera no meio. Não, era um precipío mesmo, sério!, aí eu caí e rolei, e enquanto eu rolava gritei "NÃOOOOO! EU PRECISO IR PARA A FESTAAAAAA, O PESSOAL ME QUER LÁÁÁÁÁ!". Mentira. Não, agora sério, eu fiquei com dores no corpo, achei que ia ficar gripado e o Tarzan nem ia querer me beijar na barraca do beijo. Risos. Além disso vocês todos já gostam de falar alto e dizer palavrões, ninguém tem um assunto bom que seja nesse setor, e eu não queria ver essa situação piorada quando vocês estivessem bêbados, loucaços, tirando a roupa etc (credo. quer dizer, NÃO).

abçs

sexta-feira, junho 12, 2009

Corpo de Cristo

Hoje uma criança, um garoto, chorava pedindo esmola no semáforo. Chorava alto, percorrendo a fileira de carros e gritando "me ajuda, me ajuda", com a mão levantada e muitas lágrimas no rosto sujo. Poderia estar ali por muitos motivos. Poderia ser fome, uma fome severa (dizem que fome, fome de verdade, faz doer o estômago). Poderia ter sofrido um trauma, um espancamento, um estupro, uma dor terrível, um abandono. Poderia estar chorando de humilhação. Poderia estar ali por ordem dos pais, chorando de vergonha, ou chorando de fingimento, porque lhe ordenaram.

Mas nada justifica o estado lamentável daquele ser humano em prantos. Virei-me para buscar a carteira e pegar ali um dinheiro, enquanto ao meu lado, fora do carro, o menino chorava e aquela dor me reverberava nas orelhas. Dei-lhe 5 reais, sabendo que não são 5 reais que resolvem uma agonia. Durante aqueles minutos em que procurei o dinheiro, poderia ter morrido, sofrido um assalto, um sequestro, um tiro na cabeça, um furto no carro. No final, ele agradeceu, continuando a chorar.

O que me leva a crer que seu desespero era real, e não mero teatro. Mesmo que fosse, ainda assim era uma criança em sofrimento, uma criança que não despertou a revolta de ninguém, uma criança que não estava alimentada, não estava limpa, não estava saudável, não estava brincando. Também nenhuma mão se ergueu para ajudá-la, para abraçá-la, para oferecer-lhe um conforto, nenhuma mente se questionou daquilo que viu e que não viu (afinal, já nos ensina a semiótica que o mundo que vemos diante de nós nos ajuda a pensar sobre o mundo que não estamos vendo).

Somos um país majoritariamente católico, talvez não sempre praticante, mas com certeza crente em Deus. Gostamos de ir à missa, rezar e celebrar o corpo de Cristo. Quase sempre tememos abrir nossas janelas, por medo de roubarem nosso dinheiro tão valioso, e sequer nos incomodamos, porque não aprendemos questionar o mundo que estamos construindo. O corpo de Cristo está bem guardado em nossas capelas douradas, e ao que parece deve valer muito mais que o corpo do homem, em frangalhos sob qualquer semáforo e para o qual não se rezam missas. Como diz Saramago, "assim vai o mundo e não haverá outro".

sábado, junho 06, 2009

Rodada de negócios, quem curte?

Nada mais perigoso e sexual que uma rodada de negócios entre empresas. Geralmente acontece no prédio mais afastado, cercado por um mato alto onde se escondem coisas que é melhor deixar pra lá. A infra-estrutura é impecável, o auditório tem um ar-condicionado que simula o inverno da Sibéria, os banheiros são limpos, modernos, ecológicos etc. A simpatia dos funcionários atrai os convidados sempre para o interior mais profundo daquele prédio, longe do estacionamento amarelado e dos carros com faróis ligados, que desligam à menor das observações.

É nesse ambiente perfumado, climatizado e socialmente desconectado da realidade dura deste país lusófono de dimensões continentais que acontecem as parcerias, os diálogos e, o pior, os elogios tão descarados. A coisa começa quando a coordenadora faz a social com os mais chegados, abraça e beija e inaugura o coquetel (refrigerante, suco fit de uva, pão-de-queijo, quiche de queijo, bolo de queijo, e sanduíche de frango, coxinha de frango e pastel de frango, frango e frango com frango).

Enquanto os presidentes de cada empresa se revezam numa dança louca das cadeiras, os outros integrantes se distribuem ao redor da mesa, em grupinhos primeiro herméticos, mas que depois vão recebendo um elemento externo aqui e ali, e a paquera está armada. As frases mais recorrentes são Oi, tudo bem?, o que vocês fazem?, sua empresa é o máximo!, vamos fazer uma parceria, toma aqui o meu cartão, qual é o seu telefone mesmo?, ah, eu funciono melhor por email - a partir daí, basta pouquíssimo pra as mãos deslizarem para os quadris, puxarem a calça com violência e corpos se arremesando contra as paredes.

Mas não. O que se vê é uma série de tiques nervosos, hormônios caindo e subindo, perfumes nauseantes se misturando no ar e olhos percorrendo lá e aqui, indo e voltando. Com a mente nos negócios, fica difícil divisar, entre tanto terno, tanta roupa, tanto tecido, os corpos tão desejados. O olho afinal precisa atravessar paletós, gravatas e camisetas para enfim chegar às formas tão desejadas, as gotas de suor deslizando pelos peitos e chegando aos cintos, porque lá sim residem os grandes sucessos.

Até que se desvelem todos os segredos, demora tempo e álcool no sangue dessa gente que gosta de estar gerindo pessoas. Durante este intervalo em que nada acontece, os olhos e as intenções vão dos rostos aos colarinhos e por aí param.

terça-feira, maio 12, 2009

Vi flores, vi insetos, vi árvores e vi amores

domingo, maio 10, 2009

A boa e a má

Meninas,

Ficou deliberado que vocês são meu eu-lírico, há muito combinamos isso. Parece-me razoável que vocês sejam do sexo oposto ao meu. O eu-lírico da senhorita Sá, por exemplo, é um homem e se chama Dr. Watson. Também me parece razoável que vocês sejam lésbicas. Vocês aparecem sempre embaixo de uma árvore, vestindo muitos panos e tocando uma flauta, fazendo piquenique. É muito bucólico. E como eu gosto, não há um eu-lírico mais propício.

Portanto eu peço que vocês me doem um pouco desse ar campestre, já que ultimamente o iTunes tem sido sádico comigo; ele escolhe as músicas de fossa nos piores momentos, e eu rolo pelos tapetes, as lágrimas rolando pelo rosto em abundância, e no fim a única voz que se ouve é aquela de minha mãe dizendo: "vamos ao supermercado, você quer alguma coisa?". E não posso responder, porque não há o que ser respondido. Nesses momentos de hiato, é o hiato quem deve ser verdadeiro; os filhos não respondem as mães, o amor que nos motiva não nos responde, a noite não nos responde, a Lua não responde, o vento, as folhas, os cães, e as gatas com seus filhotes. Ninguém responde. Estão todos em hiato, duvidosos do que acreditaram a vida inteira.

Estou gordo.

Estou gordo. E é inegável. Sério, não dá. Minhas camisetas antes serviam todas, mas agora o contorno dos meus peitos fica visível e os mamilos também, às vezes. Os excessozinhos dos lados também. Barriga, eco. Tenho que fazer um esforço para entrar em bermudas 42 que, antes, entravam tranquilamente, e ainda caíam, deixavam a cueca à mostra etc, aquela coisa sexy rebelde punk. Agora pareço uma morsa entalada num poço. Nas fotos, meu rosto aparece como uma lua, gordo, redondo, onde some o nariz e com um excesso de queixo, de bochechas. Tento manter uma postura ereta para disfarçar, não dá certo e entro em desespero. Vamos começar a cortar os pães, chocolates, açúcares, massas, lanches da tarde etc.

quinta-feira, abril 30, 2009

A gripe dos animais

A questão que inflama os debates referentes a vegetarianismo e onivorismo geralmente se centram no sofrimento dos animais, se animais sofrem ou não, se plantas sofrem ou não, se matar animais é o mesmo que matar plantas, se animais e plantas são o mesmo tipo de seres vivos etc. Outras questões igualmente ou mais importantes, e urgentes, tendem a ficar de fora das discussões: ecologia, desenvolvimento sustentável, derrubada de florestas para pastos, poluição da atmosfera pela indústria da carne, poluição da água pelas fezes dos animais, plantios de monoculturas extensivas (como a soja, que, ao contrário do que a maioria acredita, não é cultivada para alimentar vegetarianos, mas para alimentar gado, de corte, no exterior), desigualdade na distribuição de comida, consumismo, modos de vida, stress, obesidade, osteoporose, anemia.

E depois de tanto aquecimento global, de tanto encolhimento da Amazônia, de tantas doenças cardíacas e infâncias obesas, a humanidade é assombrada por mais uma praga: a gripe dos porcos. A OMS já mudou o nome para gripe A, porque "gripe dos porcos" acabou prejudicando o comércio de carne suína. Enfim, essa provável catástrofe não nos foi enviada por ninguém, porque dos castigos que temos que engolir bastam os que bastam, mas fornece elementos para observar a pandemia de outro lugar: o vírus dessa gripe, que surgiu de uma mutação entre o vírus da gripe humana, aviária e suína, pode ter encontrado nas grandes granjas um ambiente ideal para se proliferar. O que existe de mais propício para uma doença se alastrar, a não ser milhões de animais prensados num lugar úmido e quente, dopados de antibióticos e com um sistema imunológico fraquíssimo? Daí não vem só a carne que comemos.

Outras informações sobre este ponto de vista no blog do Saramago.


Foto de Deon.

domingo, abril 19, 2009

Silêncio



23h59 de um domingo e um estranho silêncio que não é a ausência de ruído, mas uma junção própria e bem saliente de ruídos que se fazem ouvir aqui e ali, primeiro o cooler do computador, palavra estrangeira para a qual não se encontram traduções exatas a não ser bizarrices como esfriador, e por isso cabe-se o neologismo; depois um batuque distante, seria uma cerimônia, um terreiro de macumba, uma festa...? Em seguida, o choro de um bebê. O arranque de um carro. Uma música. E ainda assim é isto o silêncio, um fenômeno que não é caracterizado pelo auditivo, mas sim pelo visual e pelo tátil, a noite escura e fria. Ademais os tímpanos nunca dormem.

terça-feira, março 31, 2009

Cajus

Vinha com os dedos lambuzados da fruta, e o aroma forte derretia languidamente com o calor suave que entrava pelas janelas, o sol soprava-lhe rapsódias na orelha e o mundo se resumia ali somente naquele conforto. Parecia um gato que havia acabado de acordar, blasé e sonolento.

sábado, março 21, 2009

Sobre o catalão e o caboverdiano

Minha história com o caboverdiano é curiosa e me inquieta desde que passei a escutar Mayra Andrade. Mayra foi catapultada para a nata dos circuitos musicais depois que saiu de Cabo Verde, sua terra natal, um arquipélago da porção setentrional da África, para cantar sobre chuvas de rabada e murros no tatame em bares cult e renomados de Paris. Mas Mayra não é o cerne de nossas preocupações.

Do mesmo modo que o latim degenerou em várias línguas que foram se transformando, o caboverdiano, a língua do povo de Cabo Verde, tem uma formação muito curiosa. O latim, por exemplo, deu origem às línguas formalmente conhecidas como latinas, o português, o espanhol, o francês, o italiano, e uma outra porção de idiomas menos praticados, como o romeno. Quem fala romeno hoje em dia? Ninguém. Ao contrário do caboverdiano, que é falado por muita gente por aí, e você nem imagina. E como a língua é viva, o espanhol também degenerou-se, por exemplo. O catalão é falado com profusão no sudeste da Espanha e custa a infiltrar o resto do país. Em Barcelona, por exemplo, ao analisar alguma obra de Gaudí, é preferível, para ser entendido, proferir um comentário em catalão, não em espanhol. Catalão é uma língua curiosa. Ao contrário de castelhano, que se diz castellano, ou español, porque o castelhano afinal de contas é a língua oficial da Espanha, catalão diz-se català. Confuso, não?

O caboverdiano é mais, e sua história permite entender a curiosa história desse arquipélago africano. Cabo Verde foi colônia portuguesa, e como tal tem como idioma oficial a língua dos patrícios. O português é utilizado nas cerimônias oficiais, nas assembleias legislativas, na imprensa e em outras publicações, como as embalagens de papel higiênico do presidente. No entanto, a língua do povo, o tupi-guarani deles, é o caboverdiano, amplamente usado nas cantigas de roda, nas receitas de caruru e no comércio de morangos e lagostas. O caboverdiano ainda está em processo de normatização, e cogita-se elevá-lo ao estatuto de segunda língua oficial do país, ao lado do português.

Essa falta de normatização é visível na pronúncia e na estrutura do caboverdiano, que parece uma língua assim meio solta e misturada, como o catalão, uma língua que ficou para trás, que congelou. Quando Mayra Andrade canta que "tunuca parla que tem corage", ou que "é nós que embarca pa São Tomé", ou que "cadum com si mania, fá redondo virar quadrado", os lusófonos podem suspeitar: essa mulher está querendo dizer alguma coisa, que não é exatamente na minha língua, e como eu consigo entendê-la? Aí tem. Enquanto isso, os parisienses em bares cult aplaudem e aplaudem. Eles acham que estão gostando do francês bem falado dela, porque o ensino de inglês e francês é obrigatório nas escolas caboverdianas, mas eles estão impressionados mesmo, inconscientemente, é com a língua materna da cantora ter um pé lá no latim, por aproximação com o o português.

O que me leva para a seguinte hipótese: o catalão está para o espanhol como o caboverdiano está para o português.

P.S.: em uma de suas músicas, Mayra diz "dimokransia" (democracia), sendo que o título da canção é "Dimokrasa". Talvez eles conjuguem substantivos, como no alemão e no polonês. Mas aí já mistura demais.


Mayra Andrade em sua versão fatal. Caboverdiano, português, catalão, alemão e polonês em apenas 12 músicas. Imperdível.

quinta-feira, março 12, 2009

Terceiras pernas

Depois daquele "alô", momentos de caos e agonia. Uma mensagem entrecortada, uma voz meio desconhecida, dizendo "deu problema com o seu ponto do trabal", e vozes nunca mais. Uma troca rápida de chips de celular, celulares de companhias diferentes, e o sistema inteiro se fecha para o diálogo. Ainda resta uma esperança: cartão de orelhão! Mas é claro que como ninguém usa orelhões, e esta era uma sina a ser vencida, o único que funcionava estava a quilômetros de distância, nas areias cruéis do piso de concreto, sob o sol. As vozes retornam. "Você precisa vir aqui no décimo andar para assinar sua folha de ponto. Ela estava vindo e voltando sem sua assinatu" milhares de rostos aparecem no céu, as chefes relapsas, funcionários atolados de papel e SUCO EM PÓ CLIGHT. A tela do celular? Apagada para sempre. "Digite o seu SIM", sim?, que tipo de celular requer um advérbio de afirmação para funcionar? "Não, eu não sei o meu SIM". Meu Deus, eu nem sei o que é um SIM, então este mundo está mesmo perdido.

Aí almoço, e depois trabalho. No caminho, recai a consciência terrível de que naquele momento havia-se perdido a terceira perna, esta inútil que nos apoia. Qual seria a próxima terceira perna, então? Dormir no ombro do deputado? Morder a bochecha da menina ao lado? Colocar um piercing? Azia?

O desfecho trágico desta terrível história vem a seguir, não menos sem algum alento. A internet é a nossa terceira perna, porque ela resolve tudo. "Para desbloquear celulares, dirija-se a uma de nossas lojas". No mesmo momento, um chamado divino de um amigo de longa data, convidando para um lanche. No shopping. Shopping = loja de celulares. Magnífico. Atendente sorridente, esperando ser utilizada. Explicações. Histórias. Testes. Sorrisos. Chips. Baterias. Veredito: celular quebrado. A terceira perna indo-se para sempre. Cortinas. Medo. Silêncio. Morte.

domingo, março 08, 2009

Olá, tenho 9 anos e estou grávida :)

"Olá, tenho 9 anos e estou grávida :) Vamos brincar de boneca? Eu trouxe minha boneca preferida pra gente brincar. Você trouxe a sua também? Legal, a gente pode fingir que aqui é a nossa casa e os nossos maridos estão trabalhando, e... ah, você prefere brincar de bicicleta? Eu não posso brincar de bicicleta porque estou grávida de gêmeos, ai, espera, eu preciso sentar porque minhas pernas doem..."

Deveriam ter deixado essa garota de 9 anos que foi estuprada pelo padastro continuar com a gravidez. Afinal, ser mãe de gêmeos é tudo o que uma criança de 9 anos mais precisa, não é mesmo? Nada mais natural, saudável e respeitoso à vida humana. O fato é que Deus tem planos para a vida de cada um de nós, e isso inclui termos uma vida infeliz visando à vontade do altíssimo, sermos enrustidos, expostos a riscos de doenças sexualmente transmissíveis e estuprados aos 9, levando gêmeos no útero durante 9 meses. Os que apoiam o aborto devem obviamente ser excomungados, os que estupram, não, afinal estamos aqui para nos reproduzir, apenas. "Crescei e multiplicai-vos", não é isso? Crescei e multiplicai-vos e depois vos perguntais por que o planeta está tão quente, tão poluído, tão destruído, tão caótico...

E aí, quando essa menina morresse matando os filhos que ela impositivamente teve de carregar, os bispos que defenderam essa gravidez não-natural, depois de anos de cegueira rezando para o teto de suas igrejas, poderiam começar a rezar olhando para a Terra.

editado: Para conferir e pensar um pouco mais.

quarta-feira, março 04, 2009

Anônimos

Existem textos que são inteligentemente produzidos e que nunca vêm à tona, geralmente não alcançam mais de dois leitores e portam uma sensibilidade que toca muito poucos. Os autores dessas obras podem ser pobres, desdentados, com 5 reais no bolso que às vezes não dão para um parco almoço, e nada lhes resta a não ser contar suas histórias por aí, e que bom que ainda têm energia para cantar, sorrir, falar e falar, porque nessas horas o hálito amargo de café não pode incomodar aos ouvintes. Publico aqui um desses textos, de um desses autores, a quem a pobreza não deu o privilégio de publicar sequer uma palavra.

"A mulher e a flor querem carinhos
Cada uma tem a mesma refulgência
Bonitas sem ódio e sem espinhos
Duas fontes de amor por excelência

A mulher para amar tem paciência
Zela o lar o esposo e os filhinhos
E a flor joga pétalas com essência
Nos cascalhos mais duros dos caminhos

São tão boas tão meigas e tão unidas
Tão sublimes tão belas e tão queridas
Que uma nos prende no aroma outra no riso

Se o homem quiser ganhar amor
Acarinhe a mulher e zele a flor
Que esse mundo se torna um paraíso"


Eduardo Manoel dos Santos

kkkkkk



kkkkk! gente rs! desd pequeño e já causando confusões rindo pra galera. essa fota é um prova de q, se vx são bbês, então devem aproveitar ao mássimo e rir de TUOD. neça época sinistra em ke se comiam só papy=7nhas, qse semrpe de abacatch com l~imao, não avia nada msmeo a fazerrr, a não ser GAGRALHRAR. atoron.

agora, se eu soubece que viveria a era do ACEQIMENOT GLOBAL, não teria rencecarnado nste país, teria escollido outro logradouro, como SIBÉRIAQEMCURTE? a diferensa é que poderia conjelar se gagralhrarsse com a boac tão aberto. nd é perfeito né gente rs ai. enfin, os gramdes propózitos deste post son:

1. eu antes de ir pra secola;
2. mmma~e quero ppxca;
3. aceqimenot global STOP
4. bebês fofinhosos kkkkk NOT

segunda-feira, janeiro 26, 2009

Registro sonoro

Escute o registro sonoro e responda às perguntas seguintes.

Tin tin tin *musiquinha*. Unidade 11, o dinheiro a qualquer preço. Banco!, página 146. Ganhar dinheiro é bom, mas gastá-lo é melhor ainda. Então, e vocês... o que vocês fariam se fossem milionários?
Se eu fosse milionário? Hmm... eu compraria uma grande mansão, eu faria muitas viagens e...
A gente nunca sabe. Mas eu acho que eu doaria tudo para, é..., para as crianças que são infelizes, sei lá, na África ou para associações na França.
Eu, eu teria a possibilidade de criar minha própria empresa. Et aí eu... eu daria um pouco para meus pais, meus amigos.
Trocar meu carro que não funciona mais. E... é isso! Meu conforto em primeiro lugar.
Eu, eu alugaria uma mansão formidável no litoral... e... com sol, e convidaria todos os amigos, todas as namoradas e faríamos, hmm, uma festa inacreditável durante uma semana, um mês, todo mundo dançando sem dormir, com uma piscina, e muitas belas mulheres molhadas e peitudas dentro da piscina. Ééé! E depois, depois, bom, eu faria uma viagem, uma boa viagem, ah sim sim, dois meses, três meses, eu faria a volta ao mundo, sim, sim, gastando e gastando todo o dinheiro.
Como vou me casar, eu faria um casamento superhipermegablastergrande. Eu aproveitaria para comprar o vestido mais belo do muuuuuuuuundo!, um vestido de um famoso costureiro, coisa fina. Aí depois, sei lá, talvez nos casaríamos na Notre-Dame de Paris e aí, bom, sei lá, aí alugaríamos o último piso da Torre Eiffel para fazer a recepção, e os convidados que não trouxessem presentes caros seriam jogados lá do alto. Convidaríamos todo o mundo, o mundo inteiro mesmo. E depois faríamos uma grande festa durante toda a noite com um supergourmet que nos faria umas comidas megabelas e extremamente hiperelaboradas. É isso, eu acho que faria isso.

terça-feira, janeiro 20, 2009

Retratos pitorescos

Chego cedo, estaciono mal entre dois carros mal estacionados, um Honda Fit e um C3 da Citröen. Todo dia é a mesma coisa, uma ginástica no volante para acertar o carro na vaga, enquanto mil e um carros vão se alinhando atrás de mim, e no final todos os carros ficam mal estacionados. Alguns motoristas estacionam TÃO mal que dá vontade de riscar os carros deles inteirinhos! Mas isso não convém no momento. O fato é que do meu lado direito existe um rosto, um rosto dentro do carro. Uma cabeça angulosa emoldurada por um cabelo liso e preto, escorrido. A pele do rosto é morena, e provavelmente a do resto do corpo também (é claro). É uma mulher, uma moça. Enquanto ajeito o carro na vaga, desistindo logo no começo, porque não adianta mesmo, a moça rói as unhas, ansiosa. Já fumou vários cigarros, ali dentro mesmo. Deve estar esperando o começo das aulas. E todo dia é a mesma coisa, tanto quanto os carros tortos no estacionamento. Ela senta no mesmo lugar, cruza as pernas do mesmo jeito, e os olhos das outras pessoas fazem assim: começam pelo topo de sua cabeça, admiram seu cabelo preto e escorrido, depois se chateiam com seu rosto sempre mal-humorado, chato e impaciente, depois descem pelo corpo bem vestido, alinhado, elegante, asseado, com braços tatuados, os dois braços são tatuados, depois voltam às orelhas quando percebem que ali existe um alargador roxo, depois descem de novo até os pés, sempre cobertos por um sapatinho de plástico. De plástico porque ela é vegana, como faz questão de comentar em algumas aulas. Veganos não se vestem com pele de animais, nem frequentam açougues (em francês, a palavra boucherie significa açougue, e também carnificina). Mas ela está sempre descontente, impaciente, vidrada no relógio como se o tempo passasse lentamente, mais devagar que em Oslo. O tempo corre superdevagar em Oslo, ou melhor, não corre, rasteja. Então, o tempo para essa moça rasteja. E quando ela fala, é como se ela jogasse todas as suas ansiedades para fora, suas palavras são loucas, arremessadas, rápidas, hesitantes, trepidantes porque tropeçam de sua boca para o ar. Seu francês tem um sotaque rascante e quase dinamarquês, ou melhor, é totalmente Dinamarca, e ela fala de veganismo, freeganismo, especismo e a derrocada das gerações anteriores. E quando a vemos dentro do carro enquanto ajeitamos o nosso próprio carro na vaga, ela, roendo as unhas, desliza o olhar para o lado, sorrateira, tentando enxergar, mas ela não sabe que nós a estamos vendo, não sabe que a estamos comparando a um índio xavante. E quando giramos o volante no sentido contrário para alinhar o carro, ela volta os olhos para frente, e ali tritura todas as suas ansiedades.

Redação de prova

Existe uma diferença entre aqueles que mendigam na rua e as pessoas que tocam música em lugares públicos para ganhar dinheiro? Argumente, utilizando os conectores que exprimem contradições e os pronomes relativos.

Sempre existem diferenças e semelhanças entre as pessoas que mendigam e aqueloutras que tocam música na rua, por exemplo, para ganhar dinheiro, embora o objetivo delas pareça o mesmo. As origens delas podem ser as mesmas: elas podem ser refugiados políticos, ou então vítimas de algum desastre, talvez tenham perdido seus empregos, suas casas, suas famílias. Mesmo que muitas vezes essas pessoas sejam vistas como tendo necessidades e histórias de vida iguais, e mesmo que elas tenham os mesmos objetivos (ganhar dinheiro), existem nuances que fazem a diferença.

Mendigos geralmente contam histórias tristes ou trágicas, no intuito de chamar a atenção e sensibilizar. Instrumentistas, pelo contrário, tocam músicas pelas quais serão recompensados em dinheiro. Existe uma diferença entre dar dinheiro a alguém porque sentimos pena e recompensar o trabalho de um músico talentoso.

O filósofo Charles Peirce, que estudava a significação, a representação e as diferenças entre dois ou mais significados em uma rede de signos, criou o pragmaticismo, um método que permite estudar essas diferenças a partir das ações que envolvem esses signos. Segundo este método, o signo é definido pelo seu hábito, isto é, pela ação que produz. O pragmaticismo nos ensina que mendigar é diferente de tocar música, por mais que o objetivo seja o mesmo, simplesmente porque as ações produzidas por esses atos são diferentes.

Agora imagine. Se mendigar e tocar um instrumentinho ali fossem realmente a mesma coisa, o mundo seria uma bagunça, todos os mendigos iam tocar flautas, clarinetes, tambores e oboés, e como as pessoas têm gostos diferentes, cada um tocaria uma coisa. Uma marchinha ali, uma valsa acolá, cá uma polca, mais adiante um forró, e a rodoviária de Brasília seria muito, muito pior do que já é. Ainda bem que os instrumentistas são tímidos e melancólicos, e ainda bem que há outros que apenas contam histórias por aí.

terça-feira, janeiro 13, 2009

Mais aplausos! Mais!

O nome da música já é genuíno, a personagem é risível, e a cena, ridícula. As gozações que apareceram na internet não poderiam ser menos engraçadas. Com uma novela dessas, quem precisa de Madonna?



que beijinho doce que ele tem
depois que beijei ele
nunca mais andei ninguém

que beijinho doce
foi ele quem trouxe de longe pra mim
meu braço apertado, um suspiro dobrado
que amor sem fim...


Mais aplausos, gentalha!

sexta-feira, janeiro 02, 2009

Luciana Gimenez no meu quadrado

Se 2008 foi o ano da macumba, 2009 não poderia ter começado pior.

A história iniciou-se com um bruto enjoo no estômago, que me acompanhou durante toda a viagem e foi dar resultados apenas quando cheguei em casa: vômitos e mais vômitos. Qualquer coisa que eu colocasse corpo adentro, inclusive água, era rejeitado pelo estômago, que doía de tão fortes contrações. Quando cheguei a um nível considerável de desidratação, com garganta seca e um deserto por dentro (e febre), achei que era melhor tomar uma providência - foi quando também meus pais começaram a ter os mesmos sintomas que eu.

Foi aí que fomos todos ao hospital, às 22h do primeiro dia do ano. Ainda enjoado, sentei na sala de espera e vi um filme ruim do Didi, enquanto meus pais faziam a parte burocrática. Demorou. Depois, fomos atendidos pela médica: um de cada vez, pra não virar farra. O diagnóstico parecia tender para uma infecção alimentar, talvez por salmonella, o que foi confirmado logo em seguida pelo exame de sangue, que fizemos todos no hospital mesmo. A enfermeira que tirou o sangue talvez estivesse muito cansada por causa do ano novo, e errou a agulha na veia da minha mãe umas 3 vezes. Estresse.

Mas a parte legal vem agora: enquanto o resultado do exame não saía, fomos conduzidos a uma salinha com poltronas que pareciam divãs, onde nos seria ministrado soro na veia. Que emoção, nunca tomei soro na veia antes! Ainda mais assim, com a família toda. Um programão. Minha mãe, posuda, com seus colares e pulseiras, prostrou-se numa poltrona ao meu lado e deixou bem claro que tinha medo daquelas coisas entrando no corpo dela. "Moça, se eu não quiser mais, você vem aqui e tira, certo?". Era um frasco grande de soro, e outro menor de algum remédio para o estômago, mas a enfermeira insistia em não esclarecer o que era. Enquanto minha veia era preparada para receber os estranhos líquidos, olhei para o lado e contemplei a figura paradoxal de minha mãe recebendo soro na veia. Nunca achei que fosse vivenciar isso. Quase a chamei de pinguça.

Então finalmente penetraram uma agulha em meu braço, e eu vi o sangue saindo de-va-gar-zi-nho, e depois o soro finalmente entrando. A picada da agulha doeu, mas percebi que eu realmente não tenho pânico dessas coisas. Todos aqueles canudos de borracha, o líquido escorrendo lentamente até desbravar o meu braço, o meu corpo, todas aquelas pequenas válvulas verdes de plástico que conntrolavam a entrada do soro... tudo me pareceu muito robótico. Legal, gostei.

Só que na salinha onde estávamos (e meu pai fora levado para outra, para o desespero de minha mãe), havia uma televisão sintonizada no programa da Luciana Gimenez. A única coisa que passou foi uma banda (?) de funk com muitas mulheres popozudas de calça branca, que mostravam os fundos para a câmera. Mulher melancia, mulher abacate, maçã, morango, pêra, banana, uva... todos os tipos de mulheres, para todos os gostos. E quando a banda terminava uma música, sempre com letras instrutivas e que faziam minha mãe se remexer desconfortavelmente na poltrona, a Luciana Gimenez comentava algo como "que legal!, e a mulherada dançando, hein?", e fazia uma pergunta boba. Os vocalistas respondiam, e ela dizia "que legal!". Deve ser fácil ser a Luciana Gimenez: é só ficar o programa inteiro dançando e repetindo "que legal, que legal", acrescentando um comentário ou outro, mas não precisa ser nada geniaaaal não. O ápice da história foi quando a Luciana convocou ao auditório aquela brilhante artista que compôs a dança do quadrado, e aí o nível baixou: "agachamento no seu quadrado, agachamentonoseuquadrado, eita que a mulher melancia deve fazer muito esse!". Minha mãe enfartou. E eu estava quase me torcendo de rir com os pulos desajeitados das popozudas dançando em seus minúsculos quadrados, e torcendo para que o peito de uma delas pulasse para fora da roupa e a Luciana dissesse "que legal!".

Até que um médico gente fina apareceu e perguntou se estava tudo bem, e eu tomei coragem e disse "sim, menos a televisão!" "quê?" "menos a televisão!" "ah tá, mas também... que péssimo". O médico mudou para a Globo, que passava um drama americano chamado Dança Comigo?, que é uma refilmagem de uma comédia japonesa chamada... Dança Comigo?. Os americanos fazem com o cinema japonês o que os japoneses fazem com a tecnologia produzida no resto do mundo: copiam, patenteiam e vendem como se eles tivessem inventado. Em geral, as versões originais, japonesas, são melhores. Dança Comigo? não foge à regra, e é divertidíssimo. Recomendo.

A noite terminou com o soro inteiro entupido nas veias. O estômago melhorou, a disposição melhorou, e tudo há de ser melhor quando os antibióticos derem um fim às salmonellas. Só passei a última noite em claro.