segunda-feira, dezembro 14, 2009

Aipo

(ah, é mesmo, eu tenho um blog)



A reunião começou muito bem, obrigado. A convidada da noite chegou trajando roupas que eram um nojo de ver: luvas de pelica, botas, meia-calça, brincos anéis e pulseiras, sapato de salto e um casaco de pele caríssimo que ela comprou no Canadá. A anfitriã a recebeu esquadrinhando aquele casaco, que a convidada arremessou em cima da mesa, sentando-se aparentando cansaço. A anfitriã ordenou que as empregadas servissem a ceia, mas fez questão de manter o casaco sobre a mesa.

- Bonito, seu casaco, disse a anfitriã, alisando-o.

- É de pele de esquilo, anunciou orgulhosa a convidada, retirando as luvas e examinando o brilho dos talheres. - Dizem que o brilho dos talheres é um sinal de status, poder e glória. Quanto mais brilho, mais luxo.

- Pele de esquilo?, continuou a outra, pensando em quantos esquilos teriam sido necessários para a confecção daquela peça valorisadíssima. Quantas árvores ocas teriam sido deixas naquele inverno, quantos amendoins sobrando no estoque, quantos parques vazios e despovoados, quantas crianças solitárias. O forro do casaco era supermacio e ela o acariciava mirando um ponto da mesa, perdida, como se afagasse a alma reverberante daqueles animais, que na memória da cultura ainda pulavam de galho em galho. Além disso, estava enfastiada porque havia comido uma manga no café da manhã e estava entrevada no intestino, produzindo gases e cheia de odores, o que a fazia endireitar a coluna e parecer muito séria, fina e acadêmica, como quem coloca Clarice Lispector na cabeceira e sofre de dores de cabeça tortuosas.

- Você é tão fina, comentou a convidada, tomando a sopa de entrada, que era um mexidão de batata baroa, mandioca, ervilha e aipo. - A sopa poderia ser boa, se não fosse esse aipo, mas, sabe, curti.

- Minhas empregadas não sabem fazer um aipo bom, retrucou a anfitriã, segurando com força a pele do casaco como se agarrasse o cabelo de um bandido. - Elas não sabem lavar, cortar, cozinhar... aipo é um mistério para elas - A convidada bocejou. - O aipo é um mistério da natureza. Exige cuidado, amor e dedicação. Tem que lavar em água de cheiro e cozinhar durante milênios, com muita paciência. Mas elas fazem com a bunda, e dá nisso.

A convidada pestanejou. - Q? Amiga, tem um pentelho na minha sopa.

- Se vira, ninguém mandou você trazer esse bando de esquilo pra dentro da minha casa, sua vaca.

- Sai daqui!

- SAI DAKI VC PORQUE AQUI EH A MINHA CASA, SUA LOK

A convidada foi expulsa com vassouradas, ainda com restos de aipo na boca, um hálito terrível. O casaco de pele acabou pendurado em um galho, no meio de um bosque, para que a natureza se lembrasse de como é sofrer nas mãos da indústria da moda.

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