sábado, agosto 25, 2007

Tempo de (novos) imperativos

"Pense, fale, compre, beba, leia, vote, não se esqueça, tenha, seja, ouça, diga, pense, more, gaste, viva..."


Esqueça tudo isso. A ordem agora é parar embaixo de um prédio e contemplar. Observe como as varandas empilham-se umas sobre as outras, e vão subindo indefinidamente até atingir um céu tempestuoso. Fotografe. Corra sozinho num campo aberto, no meio de uma tempestade daquelas, e morra de medo de ser atingido por um raio. Perca o fôlego e engula água da chuva. Gargalhe para o bebê mais próximo, até ele se empolgar e soltar gritinhos agudos. Observe uma borboleta recém-saída do casulo, desamassando as asas, ao gosto do vento. Imagine que dor horrível as borboletas devem sentir neste instante. Descubra que o detergente de limão da BomBril é "dermatologicamente testado". Revolte-se e xingue a BomBril em todas as línguas. Proteja-se do inverno seco com algum hidratante da Nivea, porque esta sim não realiza testes. Leia Calvin & Haroldo, porque é superotimista. Aliás, leia de tudo, mas faça um intervalo entre os livros da Clarice, para evitar crises de depressão. Faça elogios sinceros até mesmo à sua dentista: ela também é um ser humano. No supermercado, sinta o cheiro das hortaliças, das frutas e dos vegetais, passe longe da sessão de carnes e peixes, e se perca na sessão de chocolates. Leia os rótulos, e tente imaginar que ingredientes serão aqueles. No caixa, ao receber a nota fiscal, agradeça honestamente e abra um sorriso demorado. Sorria também para os cães vira-latas, e repare que eles retribuem com o mais amistoso dos olhares. Observe os lagartos que se estendem ao sol, e veja como a natureza é linda. Abrace seu namorado na altura do peito, e ouça-lhe o coração (essa parte é incrível, parece que você encontra a essência mais sincera da vida). Repare que as pessoas ficam bonitas sob as lâmpadas alaranjadas dos postes. Procure o amor, e encontre-o. Aprenda o amor. Viva o amor. Durma bem, e escreva.

sexta-feira, agosto 17, 2007

Morangos verdes fritos


Os morangos vermelhíssimos contemplavam a rua numa alegria tão enorme que, premidos em sua bandeja de plástico, pareciam ter nascido ali mesmo. Tinham um olhar de sapiência que até em mim me pareceria estranhamente raro. O papel transparente privava-lhes da brisa seca do inverno, ou de um contato mais direto com o sol, mas a plaquinha, com solenidade japonesa, anunciava ainda seu destino horrível: morangos orgânicos por 3 reais. A vendedora assegurou, com uma expressão muito de virgem, que estes eram muito doces, "você nem vai precisar de creme". Creme seria a última coisa que eu jogaria em morangos, pensei assustado, Já que costumo cobri-los com granola, ou mel. Alimentos assim vermelhíssimos costumam vir cheios de agrotóxicos: morangos, tomates, mamilos, lábios e vaginas; então é bom quando os há orgânicos. Mamilos são mamãos pequenos como jabuticabas, lábios são cítricos, meio que ardem e nos fazem fechar os olhos, vaginas são, bem. [Insira aqui sua descrição sensual para vaginas]. Pois bem, até estes morangos eram iguais aos outros, e iguais às outras coisas prazerosas no mundo, vermelhíssimos, era o que eu dizia, mas clarinhos por dentro, quase brancos. Porque quase brancos são os sorrisos, os dentes, a amizade e o amor, os afagos no cabelo, os perfumes onipresentes, e o olhar amistoso dos grandes cães. A natureza sabe o que faz.

quarta-feira, agosto 15, 2007

Do dia em que Deus nasceu


Hoje eu andei até a sala e vi que no vaso de uma das plantas havia um balão de coração fincado na terra. Pequeno e muito vermelho, inclinava-se para o lado como quem espiona a casa inteira, feito a mais intrusa (e benquista) das paixões, semelhante a um ET virginal, altaneiro e quase sorridente. Dividia o espaço da planta como quem diz "nasceu amor no seu jardim".

Nasceu amor no meu jardim.
Adubaram meu coração outrora árido,
e da brisa perfumada da Terra veio o recado:
"bem-vindo à melhor das sensações,
esta que afaga e incomoda e o teu peito de mim".
Já diziam as antigas civilizações, aquelas que desapareceram há muitos anos, que o amor é a manifestação mais próxima de Deus; faz o coração sair pela boca, e está muito dentro dos homens. Então, é certo que o lide das próximas notícias dirá: "Seres humanos descobrem que Deus nasce em jardins quando primeiramente o coração sai pela boca". Mas antes, é claro, ler-se-á que "Na manhã de hoje, Deus brotou na casa do Flávio". E aí haverá coletivas de imprensa, pesquisas científicias, tudo resultará infrutífero, porque eu poderei dizer apenas "Obrigado por me fazer viver novamente".

quinta-feira, agosto 09, 2007

Paprika II


"Dear Leonard, to look at life in the face, always to look at life in the face, and to know it for what it is" - Virginia Woolf

E, sobretudo, vivia intensamente. Às vezes mais, às vezes menos, mas a fronte alta e o cabelo magenta, com 10% de ciano, e as tatuagens provocantes na clavícula, que desciam para sabe-se onde, eram um conselho de como encarar a vida de frente. Sua imaginação alucinada via no tapete do banheiro uma porta que se abria para o inferno, e de lá vinham labaredas grandiosíssimas de um fogo vermelho muito bonito; via o coração da Terra, o centro do Inferno, o oposto do Céu. Às vezes apareciam demônios de que até Deus duvidaria. Conversava com o próprio reflexo no espelho, sentia medo dos azulejos da cozinha, temia a água até a morte, discutia com a louça suja. Berrava com a orquídea do quarto, cujo nome era Edileusa, putaquepariu, Edileusa, tá maluca?!, tá maluca?! Assim mesmo, com ponto de exclamação, tudo terminava em ponto de exclamação. Colocava música alta nos fones de ouvido e rolava pelo chão da sala, sofrendo dos amores nunca vividos; as lágrimas surgiam abundantes, escorriam pela face vermelha e queimavam os fones de ouvido.

Então houve o dia mais quente da História, era sua oportunidade para viver o mundo; saiu de camisola e pôs-se a correr, e toda aquela dor excruciante nos músculos, a face contorcia-se de dor, o tecido sedoso do vestido marcava-lhe o corpo profundamente nu, e ela abriu os braços; a beleza está nas ruas! Corria de olhos fechados, os braços muito abertos, doíam os dedos; desejava loucamente ser atropelada, inclusive a morte ela queria receber com a maior dor possível, porque até a morte era para ser intensamente vivida, e correu desvairada, foi ao encontro do céu, das nuvens, dos raios e trovões, enfim.

Os jornais do dia seguinte falariam de uma moça de aparência peculiar que desaparecera sem deixar rastros. Mentira: ela correra tanto e tão rápido, com as mãos tão espalmadas, que alçara vôo. Morrera como se devia morrer. Ao fim da vida, se não se tivesse ido antes, estaria satisfeita por cada momento aproveitado ao máximo, cada frase dita com vontade, com a maior das sinceridades, cada emoção vivida ao extremo, afinal qual seria o sentido de viver e não sentir, e não dizer eu-te-amo, e não abraçar forte, e não beijar com força, e não dormir sobre os livros, e não gargalhar das besteiras, etc etc? Bom mesmo era encarar a vida. De frente.

segunda-feira, agosto 06, 2007

Segredos do vento


O vento lhe segredou aos ouvidos. Contou-lhe dos tormentos mundanos que diminuem os homens, esses que os roem por dentro, corroem, viram tudo do avesso, enfim. Parecem nossa dor diária e incompartilhável. O gosto amargo da bebida, o pão que o diabo amassou. Virar a esquina e encontrar a miséria estendida diante de nós. Chorar por dentro, sentir-se incapaz. Poluir o mundo e não sentir culpa, arrebatar-se pelo ciúme. Ciúme é desamor. Conhecer o desconhecido e sentir a dor de um parto, porque a antipatia é o pior dos filhos a parir; encarar o oceano.
Apenas depois, chegar à porta suprema e girar a maçaneta, abrir a caixa de pandora, e receber a luz. Ver a vida por todos os ângulos, tomar consciência, amar ao outro em completude, enxergar através, cair nos gracejos da paixão. Encontrar a beleza das rugas, da pele flácida, do retorno à inocênca. Sentir a leveza dos gestos, o som da terra ao fecundar-se. Beijar a face do irmão, encarar o oceano. Viver-se, nascer e morrer na certeza de que se amou, porque amor incorreto não há. Há uma vida que nos espera.

quinta-feira, agosto 02, 2007

O planeta deles


Dizem os documentários alternativos que, muito antes de os europeus descobrirem o zepelim, os maias já haviam mapeado toda a galáxia. Eles sabiam quantos dias durava um ano, e sabiam quanto durava um ano em Vênus, e perceberam que os planetas giravam em torno do Sol, e que o Sol girava em torno de uma galáxia maior, que emitia uma luz muito forte a cada 5.125 anos, capaz de alinhar os planetas, alterar seus campos magnéticos e despertar a consciência do homem e dos outros animais. Acreditavam que a sombra da Lua na Terra era capaz de produzir desgraças. Depois, a Nasa descobriu que a sombra da Lua percorre a Europa, o Oriente Médio e o sudeste da Índia. De um dia para o outro, os maias desapareceram. Todos, de uma vez só. Deixaram intactas suas construções, seus equipamentos, seus cálculos e escritos, e escafederam. Restam apenas as conjecturas, muitas das quais asseguram que eles foram por vontade própria, livre e espontaneamente. A imaginação humana supõe que eles observam a Terra ainda hoje, porque vagam livremente pelas galáxias, em carroças que outrora aravam arrozais. E conversam sobre o planeta onde moraram, por meio de fluxo de consciência intercambiável. Assim:
Maia 1: Estabelecendo contato. Câmbio.
Maia 2: Contato efetuado. Pode reportar, câmbio.
Maia 1: O planeta deles ainda é um organismo vivo, mas extremamente desequilibrado. Estão fazendo várias coisas erradas, das quais algumas boas sobressaem. O habitat deles é cinza e esfumaçado, eles moram em - como posso dizer? - grandes tijolos espelhados que se erguem até o céu. Moram todos juntos, uns do lado dos outros, uns em cima dos outros, mas ninguém se conhece. A ciência que eles construíram permitiu que vivam longamente e em abundância, portanto eles imitam tatus vez ou outra, quando descem ao subsolo para embarcar em trens. Estão extremamente longe da natureza. O que conhecem de florestas e rios está apenas em fotos e numa caixa que eles usam muito. É uma caixa estranha, grande e lisa, com imagens que se mexem. Sua crença no Ser Superior é muito fragmentada. Alguns acreditam em um deus, outros acreditam em vários, outros em nenhum. Por causa disso, eles brigam eternamente e fazem guerras, explodem os tijolos espelhados. Aliás, ultimamente eles têm guerreado por causa do petróleo. Petróleo é um líquido que eles usam para andar em suas carroças, e é o principal motivo das chuvas ácidas, buracos na camada de ozônio, derretimento de geleiras...
Maia 2: Derretimento de geleiras? Céus. Desculpe a interrupção, mas é que achei estranho. Câmbio.
Maia 1: Sim, eu também acho. Enfim, ainda vai demorar até eles perceberem que no planeta há uma ligação em tudo, e que eles podem desaparecer como seres pensantes. Câmbio.
Maia 2: É o que nós dizíamos anteriormente, sobre eles precisarem optar entre a nova consciência ou o desaparecimento completo, até o dia 20/12/2012. Continue o relatório. Câmbio.
Maia 1: Eles ainda não perceberam que pertencem ao planeta, acreditam que o planeta lhes pertence, portanto criam animais. Aos animais foram designadas tarefas específicas, totalmente aleatórias. Cachorros e gatos servem para companhia, e vacas, galinhas, porcos, peixes, répteis, roedores, aves, todos estes servem para alimentação, transporte, montaria, entretenimento e pesquisa científica. Acham um absurdo comer cachorro, mas gostam de comer porcos, sendo os porcos mais inteligentes que crianças de 3 anos. Gostam de animais fofinhos, mas acham normal usá-los livremente para fazer produtos de beleza. Sua alimentação está repleta de derivados animais, inclusive leite. De vaca. Você acharia isso normal? Câmbio.
Maia 2: Não. Câmbio.
Maia 1: E ainda não desenvolveram uma consciência libertadora e plena do próprio corpo. Tomam remédio a qualquer sinal de irregularidade, em vez de manipular a energia vital. Câmbio.
Maia 2: E quanto ao planeta deles? Câmbio.
Maia 1: Está morrendo. O planeta deles está morrendo. Câmbio, desligo.