quarta-feira, maio 24, 2006

Cenas domésticas


A mãe berra o anúncio de que o jantar está à mesa; ninguém sai correndo, e as moscas e o ar frio acabam por tomar conta da comida, tornando-a podre e semelhante a um cadáver antes que o filho sequer toque o metal frio da colher fossilizada; a mãe gritará novamente até as pregas vocais lhe explodirem, o filho sairá correndo, a raiva irá dominá-lo e o prato cheio da comida fétida será atirado sem dó às paredes.

Divirtam-se, paredes, comam da comida que era minha, vocês estão tão pálidas de fome, depois divirtam-se com os estilhaços do prato; a comida escorreu, escorreu, depositando-se por fim no piso frio, adubando o granito cinza e tão mórbido, fazendo emergir do assoalho uma árvore feia, marrom, pelada e torta, cheia de uma beleza por descobrir que, no caos da cotidiana vida doméstica, não seria descoberta; a beleza da árvore estava no contraste de sua cor com a cor das paredes, mas olhavam-se apenas a árvore e as paredes em separado, nunca juntas, e nunca se percebeu o encanto do contraste oriundo da catástrofe doméstica.

O filho pegou a maçã na cozinha e a mordeu. As maçãs mudaram o mundo. Eva mordeu a maçã e a humanidade nunca mais foi a mesma. A maçã caiu na cabeça de Newton, idem.

segunda-feira, maio 08, 2006

Dentadura


Dentro do prédio, os alunos deitam-se e a professora apaga as luzes. A professora tem labirintite e medos de várias coisas, entre os quais de escuro e de pisar nos alunos deitados, de modo que eles, os alunos, vêem o vulto torto da professora escorrendo pela parede até encontrar um lugar seguro onde sentar.

Fora do prédio, na própria rua onde o mundo acontece e acontecem as coisas do mundo, um velho entra no ônibus lotado e senta-se. Ele também tem medos de várias coisas, entre os quais perder a dentadura; é o que vai lhe acontecer em breve, mas ele ainda não sabe. Uma moça cheia de casacos e plumas e roupas que se mexem senta-se ao lado dele. O velho não resiste e espirra, a dentadura cai aos pés da moça. A moça grita, mas estão todos paralisados em decorrência da lotação do ônibus, e ninguém olha. O velho pega a dentadura, que sorri. A dentadura só sorri, e só para a moça, inclusive. Quando a moça, cheia de horror e asco aos dentes do velho, vira o rosto para o lado, o velho tenta recolocar a dentadura, mas a moça desvira-se em seguida, e o velho desiste.

Os dois ficarão nessa dança louca de olhares e tentativas e constrangimentos e vergonhas e ascos inúteis até que a professora levante-se novamente para acender as luzes do prédio.