domingo, julho 29, 2007

Paprika



Vivia no mundo da lua. Da última vez que viu o barman despejar quilos de açúcar na bebida, imaginou a Morte deslizando lentamente as escadarias apertadas, como uma doença que corrói os ossos, tentando um disfarce cômico debaixo de um chapéu rosa-choque de muito mau gosto. A Morte é inconfundível, e seria em vão. Depois esqueceria a Ominosa na pista de dança, onde a fumaça de muitos odores convidava a uma viagem para lá de Bagdá. Quando a mulher gorda aproximava-se, dançado despudoradamente, avisava ao desconhecido mais próximo que a Morte havia chegado, e o aviso era entendido como um "oi, tá a fim?" (a estas alturas, qualquer palavra é compreendida com altíssimo teor sexual). Saía correndo, para refugiar-se nos substratos mais profundos da consciência (esta parte acontecia no sofá, ou no banheiro infecto e imundo, mas só em casos mais graves, e apenas se a noite estivesse para Castro Alves). O estofado do sofá era muito macio, muito mesmo, incrivelmente, e convidava a uns amassos indecentes, apesar do cheiro de mandioca puba que exalava. Mas acostumava-se, a gente se acostuma a cada coisa.

À saída, enfim, com a cabeça mais nas nuves do que nunca, dizia para a última menina da festa que "moça, seus peitos estão pra fora", mas era míope e nunca viria a descobrir que os peitos eram uma estampa meio árcade, meio barroca, da camiseta (são os barrocos que gostam dessas coisas espiraladas e redondas, esses rococós que parecem peitos, na cabeça dos míopes). Vivia no mundo da lua, era o que eu estava dizendo. Mas assim era bom.

quinta-feira, julho 05, 2007

As vantagens de um gato



Ganhei um gato que se chamava Totó. Tudo do Totó era pesado. Sua pelagem era pesada, sua cor era pesada, seu olhar era pesado, suas patas, seu andar, sua compleição era pesadíssima. Tinha um jeito peculiar de encarar a vida, deitava no braço do sofá e esticava a barriga estufada, deixava pesar cada pálpebra, e me olhava com um sono matador. Dormia, ronronando alto. Às vezes mexia as patas durante o sono, e eu me indagava se Totó sonhava. Sim, ele sonhava, como qualquer outro bicho senciente. Com que sonhava Totó? É provável que fosse com estradas amarelas e árvores estranhamente magentas, tudo muito colorido, em altíssimo grau de luminância, e ratinhos de chocolate que o vinham atazanar. Era nestes momentos que percebia o óbvio grau de parentesco entre "atazanar" e "ratazanas", achava evidente que as ratazanas viessem atazaná-lo. Eu ratazana, tu ratazanas! Rapidamente elaborava trava-línguas, e logo se via dizendo, enquanto mexia as patinhas, que as atazanas não podiam ratazaná-lo. Perseguia todas elas, matava cada uma, sem dó. Acordava no chão, de barriga para cima, transpirando. Não sabia por quê.
Na rua, meninos zombavam de mim e eu fingia que não era comigo. Voltava com sacolas lotadas de groceries (como dizê-lo em português?), algumas avelãs, revistinhas e revistões. O telefone não cessava de tocar, por causa das vendedoras de cartão de crédito, que ainda perturbavam os estudantes. A filha da vizinha de cima era um monstro, um bicho horroroso, e corria de patins no meu teto. Um barulho infernal, um caos doméstico, e o sofá úmido de meu suor.
De repente apareceu Totó, que ignorou minha cara de raiva, deitou ao meu lado e lambeu meu braço, e ficou lambendo. Eu impaciente, e um bicho me lambendo. Vantagens de ter um gato.
Na foto
, o gato Felus.