sexta-feira, dezembro 19, 2008

O pronto que nunca é pronto


Os natalenses têm uma mania muito inata de dizer "pronto" quando querem confirmar uma afirmação, uma ação etc. Funciona no lugar do "ok", do "certo" e tudo o mais. Então, no apartamento, a arquiteta mede a gaveta que veio com um defeito de fabricação e promete, 6 meses depois, fazer uma gaveta com as medidas certas. "Pronto, pronto, tá tudo certo. Pronto". Na data prometida, a gaveta chega bem mais larga que o prometido.

Na lanchonete, a mulher pede um açaí com guaraná. Mas só com guaraná, sem granola, porque tem uma alergia forte a aveia. Ela até explica para a garçonete que pode ter um piripaque se ingerir granola. "Então é um açaí com guaraná somente?" "Isso". "Pronto, pronto". Logo depois, o açaí chega, com guaraná e repleto de granola por cima. A mulher tem um piripaque só de olhar.

Talvez o pronto seja tão automático que eles mal prestem atenção no que ouvem.

quinta-feira, dezembro 04, 2008

Percursos do olhar (ou o cara da foto)

O site da faculdade era dinâmico e todo ilustrado, cheio de fotos de estudantes sorridentes e felizes por estudarem num lugar tão iluminado e alegre!!!; mas toda vez precisava pegar informações em uma seção específica e dava de cara com uma foto particular. A foto mostrava duas estudantes em primeiro plano, uma morena e outra loira, sorridentes-é-claro, e atrás um rapaz com cara de Suíça, cabelo loiro-escuro, olhos provavelmente acinzentados e um trecho fino de barba que ia do lábio inferior ao fim do queixo; essa barba exótica assim poderia ser uma referência aos antigos faraós egípcios, o que era excitante, mas de faraônico ou egípcio o rapaz não tinha nada, por causa da pele clara e traços obviamente europeus. O nariz um pouco largo, mas ainda delicado, era uma evidência de algum bisavô árabe, mas de árabe só aquilo mesmo, porque o rosto era todo harmonioso, fino, europeu, enfim, suíço. O rapaz sorria sem mostrar os dentes, e aquela timidez provocativa fazia o olho descer um pouco e encontrar o casaco cinza que ele usava, por cima de uma blusa branca, e era só o olho descer um pouco mais para encontrar um mamilo latente, mas bem pronunciado, ali mesmo sob o casaco. Era o tipo de mamilo que despertaria a imaginação de qualquer um. Infelizmente a foto terminava ali; o olho, ávido, poderia descer mais e apenas encontrar em negrito "Informações ao candidato". Aquele espaço resumia-se àquilo: estudantes-felizes, rapaz-suíço, mamilo, informaçõs ao candidato.

E era assim toda vez que visitava a página para pegar informações. Estudantes, rapaz, mamilo, e depois só rapaz e mamilo, rapaz e mamilo. No fim apaixonara-se por aquela foto, aquele suíço longe e inexistente, e alguns pensamentos sórdidos invadiram-lhe a cabeça, como o destino da outra mão do suíço. Porque a foto mostrava apenas uma mão. A outra talvez estivesse acariciando as costas de uma da estudantes, ou, pior, apertando a bunda dela. Não! O suíço era apenas seu, apenas seu, e a única bunda que apertaria seria a sua, sob lençóis brancos e perfumados...

Durante todas as férias rolava na cama pensando naquele rapaz inalcançável, imaginando coisas, não era estranho ter se apaixonado por uma foto? Não, era perfeitamente normal, acontecia toda hora. Mas no começo do semestre seguinte o site trocou a foto pela imagem sem vida de um prédio, e em sua imaginação flutuava apenas aquele mamilo sedento...

segunda-feira, dezembro 01, 2008

Diálogo no escuro

- Se bem que, depois de morrer, ele não ia se importar com os lugares onde eu colocaria a boca ou as mãos... esses ciumezinhos apegados são coisas tão terrenas.

domingo, novembro 23, 2008

Metástase

As células cancerosas existem desde sempre no organismo, elas se multiplicam timidamente e são destruídas pelo corpo saudável; no entanto é sempre nessa época do ano que o câncer se manifesta, e cresce subitamente como uma grande laranja amarga, cujo suco amarelo veda os olhos, a mente e as orelhas. A cólera incurável ocupa no cérebro os pensamentos contra os papais noéis, as opiniões dos outros e enfim o amor - qualquer manifestação de vida pode retornar com uma ação violenta, completamente destruidora. Quando o antídoto parece distante e o acometido da doença não encontra forças para lutar contra esta assombrosa metástase, por mais que relute aos assombrosos sintomas, é hora de entregar-se aos chicletes MARUKAWA.

segunda-feira, novembro 17, 2008

Trapalhadas na Universidade

As coisas funcionam (quando funcionam) assim na UnB: você liga para o celular do novo reitor, na sexta-feira, e ele diz que te passa o nome dos novos decanos na segunda. No mesmo dia, você recebe o recado de que o secretário de comunicação já tem confirmados esses nomes. Você liga pra ele e ele te repassa para a Secretaria de Comunicação (a preguiçosa e caótica Secom). Enquanto as assessoras te repassam os nomes dos decanos, uma ligação misteriosa manda interromper todo o processo, e elas cancelam tudo dizendo que os nomes não estão confirmados, o que é muito complicado para elas, porque elas "têm um jornal para fechar" (eu também). Então, na segunda-feira você volta a ligar para o reitor, ele enfim te autoriza a pegar esses nomes na Secom, e as assessoras, com ar de deboche: "você falou com ele diretamente e não pediu pra ele os nomes?". "Não, hehehe" ("não, vocês são tão burocráticos que ficam repassando de um para o outro uma obrigação que não é do reitor, mas da assessoria, imbecil"). As assessoras anotam o seu celular para retornar a ligação em breve, não retornam, e, ligando lá novamente, você descobre que "em 10 minutos" o site da assessoria vai divulgar os novos decanos.

Um bom tempo depois, o site divulga os nomes finalmente, e você sai correndo porque precisa escrever uma matéria (cujo lide poderia ser "Secom tenta abafar novos decanos com desculpa esfarrapada").

(no mesmo dia, a decana de graduação da gestão pro tempore afirma a uma repórter do Campus, que está fazendo uma matéria sobre falta de professores concursados - um problema antiqüissímo na insitituição - que esse problema "ainda não chegou ao decanato". Talvez a decana tenha se eclipsado no tempo).
(ainda no mesmo dia, e essa é a parte bombante da história, você descobre que essa decana, essa mesma, a que não sabe sobre a falta de professores na UnB, vai continuar no cargo durante a nova gestão).

domingo, novembro 02, 2008

Salada de fruta

Já fiz fotografias de muitas gentes. Gente dormindo no chão, gente morando a 40km de Brasília, no meio do mato e dos bichos, gente no interior do Goiás, gente trabalhando em museu... mas foi aquela senhora da rodoviária, no meio de toda aquela gente, que me ensinou a agradecer. Ivanilde vem de Luziânia todo dia, e recolhe esmola ao lado do Conjunto Nacional enquanto o marido toca sanfona. Os rendimentos são poucos e valem, quando valem, um almoço modesto: arroz com feijão. Mesmo passando horas sob o sol, com a proteção de um guarda-chuva, o casal não sabe quanto dinheiro terá para gastar com comida.

Por intermédio da lente, eu vi os olhos marejados de Ivanilde, vi o sorriso simpático atrás das rugas, vi os cílios e as sobrancelhas, as marcas de sol, as imperfeições nas roupas, e as perfeições também, e antes que eu chorasse ali mesmo, tentei encontrar um enquadramento que fizesse jus à leveza daquela mulher.

Ivanilde ganhou uma salada de fruta no fim da entrevista, ergueu o copo para o céu e agradeceu, novamente emocionada. Eu é que agradeço, e tomara que mais gente passe por você.

(e o engraçado é que esses US$700 bilhões não estavam guardados para ajudar as pessoas, mas sim os bancos; não para salvar as vítimas, mas para absolver os culpados)


crédito da foto: eu mesmo!

terça-feira, outubro 28, 2008

Zen

Deus, me ensina a ser zen novamente.

terça-feira, outubro 14, 2008

Curtas

1. Algumas pessoas tiram os sisos, incham, sangram e sangram.

2. Hoje era o dia em que os ETs iam dar as caras no hesmifério sul, numa suposta missão de paz. Eu esperei tanto para que isso acontecesse! Pelo menos teríamos feriados.

3. Nessa de ir e voltar, estacionar no sol, me preocupar com porcarias, carregar uma câmera pesada a tiracolo, e feder até o fim do dia, terei envelhecido quantos anos?

segunda-feira, outubro 13, 2008

Je me plains par email


Colegas, minha vontade de ficar em casa também é muito grande, de preferência vendo filmes do Alfredo Hitchcock, debaixo do cobertor e sozinho em casa, enquanto chove preto-e-branco lá fora. Entre um chocolate-quente e outro, leio um mangá, um pocket em inglês ou francês ou termino triunfalmente a seleção de fábulas italianas reescritas pelo Ítalo Kalvin. Ou, ainda, das duas uma (ou as duas ao mesmo tempo): posso fingir que trabalho na piauí e ganho um pouco acima da média, mas ainda pouco, com o plus de trabalhar em casa e viajar pelo mundo na apuração de uma matéria maluca, ou finjo que sou um pesquisador de renome que explico aos meus aluninhos virgens que a semiótica tensiva permite entender O Gato Felício de um jeito que eles nunca imaginaram. Hahaha. De todo modo serei um solitário errante, preso nas minhas fantasias.

Queridos, não é por mal, mas agora voltando à nossa realidade seca, quente e ensolarada, sem tons de verde para ver, ainda temos de entrevistar a fulana da Vila Planet e conseguir o contato daquela mulher que tem um restaurante e foi amiga de JK. Lembra? Voltar à pauta escrita e formulada é bom e desesperador - a gente vê o quanto erramos e fugimos da idéia original, além de não termos quase nada apurado.

tequieremos, láfora!

errata: percebi que a fulana da Vila Planet é a mesma que tem um restaurante e foi amiga do JK - ou melhor, é viúva do chef do JK. agora enxergo um futuro.

quinta-feira, outubro 09, 2008

Sua operação não pôde ser completada

A frase mais ouvida de todo este semestre já é, sem dúvida, a boa e velha "sua chamada está sendo encaminhada para a caixa de mensagens e estará sujeita à cobrança após o sinal", que muitas vezes é lida por telefonistas MUITO afobadas que pretendem terminar logo a frase para fazer soar o sinal e cobrar do sujeito que está do outro lado da linha, enquanto o pobre coitado tenta ainda perceber o que aconteceu. Em segundo e terceiro (e quarto e quinto etc) lugares vêm as semelhantes "sua operação não pôde ser completada" (?), "esta caixa postal não possui serviço de chamada ativo" (???), ou a aliterante "atendimento digital: após o sinal digite o ramal ou aguarde".

***

É impressão minha ou os blogs realmente bons, escritos por pessoas que eventualmente despontam para um sucesso meteórico, nunca são hospedados no blogspot?

terça-feira, outubro 07, 2008

Manga


Na mão espalmada a manga grande e descascada cabia inteira, suculenta, cheia de vida aquática. As pessoas são tão chatas, cansativas, palpitantes, palpitativas, bedelhudas, pescoçudas etc. A garagem quente desembocava na seção infantil da loja, recebendo os clientes com um bafo fresco de ar condicionado. A estação do metrô saía assim no meio do nada; à frente, o Banco Central e nada mais, só o azul. A psicóloga é mais uma carrasca na sua vida. E a manga pingando. Mais um ping e daria para ver todos esses elementos do mundo, as cigarras, os prédios, o asfalto-essa-estampa-cruel, o amor, o amor, o amor, o azul, o vermelho, o rosa, e o amarelo da manga rodando no liquidificador.

(crédito da foto: gettyimages)

domingo, outubro 05, 2008

Olhando a cidade


Senta e observa a cidade.
O céu tenebroso é como seu humor enegrecido e seu espírito irrequieto, que sofre por antecipação. Lá embaixo, as garotas alternativas cujas casas parecem filmes do Almodóvar passam rindo, com lenços vermelhos ou azuis na cabeça. Você escolhe. O metrô está meio quente, meio cheio, meio vazio. Transpire o calor. Homens e mulheres se abraçam na chuva, os estrangeiros olham, os estrangeiros olham os estrangeiros. Um menino sai correndo nessa mesma chuva, entre as pessoas, em câmera lenta, carregando uma almofada. Quando ele abraçar a almofada e espirrar água para todos os lados, como uma esponja raivosamente espremida, encharque-se com ele.

quarta-feira, outubro 01, 2008

Querido leitor



Querido leitor,

Gostaríamos de avisar que o jornal vai atrasar. Até não se sabe quando. Bom, pelo menos até resolverem o problema do calor, que ressalta a nossa sensualidade e aumenta consideravelmente o estresse. Pode ser que tudo volte ao normal depois da reforma da FAC, quem sabe não teremos um ar condicionado? Enquanto isso, a editora-chefe deu um beijo na mesa e foi esfriar a cabeça (beeem longe daqui). Os diagramadores optaram por duas coisas: sucumbir à pneumonia ou festejar o Carnagoiânia. Os revisores, como não há páginas a revisar, não revisam. E, no final, vão sobrar cinco ou seis alunos sobrevivendo nesta redação, um lance meio seleção natural, meio Darwin demais pro meu gosto. Nesse ambiente de guerra que é um currículo doido que comunga rádio e impresso no MESMO semestre, não há botafora que salve (não mesmo) - e se você, leitor, estivesse na nossa pele, já teria mandado tudo para os ares. Sério.

Beijo,
fui.
(Flávio Silva, editor de fotografia da edição 330)

(crédito da foto: capo.mario)

sexta-feira, setembro 26, 2008

Haicais da modernidade

Quando você chega de viagem?
Domingo à tarde :(
Tarde demais, até lá o caos já terá reinado.

sexta-feira, setembro 19, 2008

Quiquitos


Eram muito parecidos, tanto na barba quanto no jeito paranóico de achar que um trovão era o mundo acabando. O rosto rosa, tudo, tudo. Juntando os dois, daria um Devendra Banhart intranqüilo, com grandes hiatos de calma e uma indiferença que não era exatamente indiferença, mas a suspensão de um momento intenso. Nem os miasmas profundos grudados naqueles presentinhos seriam suficientes para separar as marés turbulentas dos dois. Aqueles ali estão fadados a uma vida em comunhão, a uma cruz carregada juntos, a lamentações divididas e sorrisos partilhados, porque nem nisso eles diferem.

Dearest dear
I know you been here
Why'd you run tell me why'd you disappear now

That you're not
Here with me
Seems to be the only time that I can see you clearly

sábado, setembro 13, 2008

Cegueira


Ensaio sobre a Cegueira não é um filme para se comparar com o livro, que é infinito e imbatível, mas para ser deleitado como um filme rico em linguagem e narrativa, além de extremamente criativo. Sem falar que Meirelles soube ser muito sensível, a ponto de não converter tensão em dramalhão, nem beleza em final de novela. Cegueira faz tudo na medida certa, inclusive nas tão comentadas cenas de estupro, e no fim o espectador compreende porque até mesmo Saramago chorou de emoção ao término da fita.

domingo, agosto 10, 2008

Cogumelos com tomate

Teve que preparar almoço pra família inteira por causa do Dia dos Pais? Perdeu a criatividade e não quis fazer a mesma sempiterna carne moída com molho de tomate para acompanhar o macarrão? Eis um acompanhamento totalmente acidental que eu criei num assalto tormentoso de fome, aproveitando os champignons que estavam quase vencendo na geladeira. Fica muito bom com arroz, macarrão ou mesmo pão. Também funciona perfeitamente como recheio de lasanha: basta acrescentar queijo. Trocar o tomate por tomate-cereja fica realmente interessante por causa de seu gosto mais doce, em comparação com o convencional.

ANTEPASTO PICANTE DE CHAMPIGNON E TOMATE

Ingredientes:

200g de champignon
1 tomate cortado em cubinhos(ou uma quantidade equivalente de tomate-cereja, se preferir)
1 colher de sopa de molho shoyu
2 dentes de alho, cebola e azeite para refogar
Lascas de gengibre (a gosto, mas recomendo no máximo 5)
Pimenta do reino a gosto (no meu caso, 1 colher de café no máximo)
Sal a gosto
Limão para temperar depois de pronto

Modo de preparo:


Em uma panela, coloque um pouco de azeite com 2 rodelas de cebola e os 2 dentes de alho moídos. Aqueça a fogo baixo e mexa um pouco até começar a dourar e cheirar. Despeje os champignons e os tomates com o molho shoyu. Mexa mais. Quando o vapor começar a subir e as coisas começarem a esquentar, despeje o gengibre, a pimenta e o sal. Coloque mais rodelas de cebola, a gosto, se preferir (eu prefiri). Mexa mais até esquentar bastante e o champignon pegar o gosto das especiarias. Você também pode viajar legal e acrescentar outros temperos. Quando estiver bom, desligue e sirva ainda quente, temperado com o limão (1 colher de sobremesa no máximo) e misturado ao macarrão, ao arroz ou em uma tigela, para os convidados comerem com pão.

Agora é só esperar os elogios daqueles parentes chatos que você nunca viu na vida (os mesmos que gostam de dizer o quanto você cresceu, inconvenientemente perguntam pelas namoradinhas etc), dizendo que a receita ficou uma maravilha. Aproveite o limão que sobrou e, com os outros limões da geladeira, faça uma jarra de suco e sirva bem gelado, porque os convidados mais fracos vão achar picante demais.


Foto tirada e editada por mim, em homenagem ao Dia dos Pais. Porque as ovelhas negras são sempre mais laranjas.

segunda-feira, agosto 04, 2008

Silêncio

Andaram em silêncio e sem dar as mãos, porque o momento doloroso não lhes oferecia nada que apaziguasse o orgulho naquele interior seco, e a mágoa e o rancor entrando, entrando, entrando. Era quase um rasgo no baixo ventre e as tripas desenrolando lentamente pelo chão, como tecido que descostura fácil, e o coração só bombeando teimosia atrás de teimosia. Foi a despedida então que caiu como uma luz celeste por ter elucidado enfim que o amor deles era maior que toda aquela besteira.

domingo, julho 27, 2008

Eu gosto muito do papai

Eu gosto muito do papai. Ele é muito bom, muito bom mesmo. Papai possui um escritório de várias representações, papai representa várias indústrias junto ao comércio de Brasília.

Papai é magro, forte, muito e muito corajoso. Nós todos lá de casa gostamos muito mesmo do papai. Papai nos leva a passear, papai nos leva ao clube, aos cinemas, aos parques de diversão. A muitos lugares papai nos leva, e além disso papai nos leva ao cinema, para o parque de diversão, para o clube. Papai é muito bom.

Papai compra brinquedos para nós. Compra roupas, compra muita coisa, é sim, vocês pensam que papai não compra? Compra sim. Quem é Papai Noel, hein? É o nosso pai, não é? Pois então não é ele que nos dá os presentes que nós pedimos? Então, estão vendo como papai é bom? Viva o dia dos pais!

(redação escrita pelo meu pai quando ele era criança, em data imprecisa)

terça-feira, julho 22, 2008

O Grito


Acordou cedo aquele dia e examinou o rosto fundo e embaçado no espelho; sua miopia devia ter saltado uns 5 graus, mal enxergava. De repente soube divisar algo parecido com uma porta na superfície daquele vidro que sempre o andara observando. Sim, uma porta escura cuja profundidade sinistra prolongava-se para o além. Pensou se deveria continuar olhando aquele filme que lhe projetavam por ali. Sim, por que não?, um filme é totalmente seguro e o espectador sabe que nada vai acontecer com ele, porque é só uma representação. Ademais já tinha 20 anos, em breve seriam 22, depois 25, e ele seria um adulto, e viajar na maionese, nunca mais; sete, quatorze, vinte e um. Tinha um gosto estranho na boca que sem dúvida era da sopa do dia anterior, mas não saberia precisar se era do sal, do alho, da pimenta ou do gengibre. A porta agora mostrava um universo paralelo, um país das maravilhas, talvez?... O gengibre era como mandrágora e a pimenta era docinha, docinha. Olhando-se naquele espelho, naquele banheiro frio, sentia-se duro e solitário tanto quanto vai se sentir a última barata na Terra, depois da Terceira Guerra Mundial. Não mais quis hesitar, montou na pia belíssima de granito rosado e atravessou, como as personagens clássicas, que, nas histórias clássicas, simplesmente atravessam.

dica da semana:
o novo CD da Carla Bruni é legalzinho, mas começo a escutar e lembro que as músicas podem ter sido inspiradas no Sarcozy, e de repente fica tão nojento.

sábado, junho 21, 2008

Samuela


Samuela era a menina mais erótika da turma. Erótika, com k mesmo. Falava com uma voz baixa e derretida, que não eram gemidos porque ela não era vulgar. Arranjava um penteado diferente para cada dia, por vezes coisas muito complicadas, com fios que se amarravam atrás e mechas suspensas no ar, que lhe deixavam com cara de lua; era muito criativa, mas ela sempre tomava o cuidado de deixar a franja ocultar-lhe um pedaço do rosto, o que a deixava ainda mais misteriosa, erotikamente misteriosa. A pele era normal, sem maquiagens. Tinha também um arsenal complexo de botas aveludadas que fariam inveja a qualquer moça de sua idade. Quando não usava saias acima do joelho, optava por saias muito acima do joelho, indecentemente acima do joelho. Não gostava de decotes: seu segredo mais desejável estava na parte baixa do corpo. Sentava-se sempre com as pernas cruzadas, atiçando a curiosidade dos meninos que a todo custo tentavam ver sua desirrê. Não tinha celulites, apesar dos refrigerantes e chocolates que ela sempre trazia para comer durante as aulas. Chicletes? Sim, claro, vários por dia. Seu maxilar irrequieto era a única coisa que quebrava o silêncio – e a atenção – dos outros alunos. Quando falava, os gestos eram moles também, suas mãos dançavam languidamente no ar, como as de um maestro com sono, e ao final de cada frase ela as repousava sobre a mesa, e os dedos caídos apontavam invariavelmente para os joelhos. Aí os meninos olhavam dos dedos para os joelhos, e dos joelhos para as pernas, e das pernas para a minissaia. Da saia, para algum recanto sombrio lá dentro. Samuela era um ciclo interminável.

terça-feira, junho 10, 2008

Odisséia porca


É, não tinha água no ICC e eu não conseguia lavar a mão de jeito nenhum. Eu já estava nojento de tanto tentar abrir aquelas torneiras grudentas, sem falar que havia mijo no chão em todos os banheiros e as privadas transbordavam bosta.

Moscas por todos os lados.

E como no Natural o almoço era aquela lasanha nojenta de abobrinha com soja, eu fui vasculhar o RU em busca de comida melhor e uma torneira que funcionasse. Foi um almoço solitário e desolador, como o sempre é por aquelas bandas, e, no final, dois pedaços contidos de melancia. Claro que depois eu me levantei, furei fila e peguei mais melancia. Melancia nunca é demais.

No final do dia, a água voltou e as privadas continuavam amarrotadas, e tinha um vômito no chão.

foto retirada do postsecret.

domingo, junho 08, 2008

Festa Junina

Caaaaaaaara! Ontem foi festa junina. Como eu amo festa junina! Mas aquela, velho, tava muito cheia, tinha gente saindo pelo ladrão. Então eu comprei 14 reais em fichas, o que é MUITO, porque com um tempurá já dá pra alimentar a família inteira, mas enfim. Então eu entrei na fila para comprar canjica. Não era uma fila, né, era um monte de gente amontoada e se esfregando, aquele bando de mulher querendo comer bolo de chocolate, ou bombom de sorvete (quem precisa de comida típica?). Aí chegou uma mulher muuuuito perua, hahahaha!, "peraí, Fulana, meus meninos querem pedir milho verde!". Os diabos dos meninos eram como dois lêmures azedos, muito loiros, agarrados à mãe como uma prole desmamada, os olhos verdes e remelentos saltando das órbitas à procura do alimento sagrado. A canjica chegou antes do milho que a perua pediu, e eu senti o perfume de amendoim com canela da vitória eufórica, mas aí eu, eufórico, derrubei tudo nos meninos da mulher.

Foi a última visão da minha vida em liberdade: os lêmures desmamados da perua derretendo com a canjica, toda aquela pele de porcelana desmanchando no chão, um choro mimado e estridente, o fim, o fim, o fim.

segunda-feira, junho 02, 2008

Papo de adulto

Rafael diz:
Sabe sentimento de derrota absoluta?

Fláudio! atarefado diz:
Seeeei, de que o mundo inteiro nos abandonou, aí o céu fica especialmente cinza, uma névoa seca recobre as ruas desertas, um tubo de feno aparece rolando ao fundo, como nos desenhos de velho oeste, e não existe nenhum ônibus vazio em que podemos nos sentir sujos e abandonados, porque os ônibus estão em greve.



Agora posso dizer que sei o significado de derrota absoluta.

crédito da foto: Louisville Joe

sexta-feira, maio 30, 2008

Sentido da vida

"Come with me, my love
To the sea of love
I wanna tell you how much I love you"
Cat Power

A mulher se escorou no balcão e esperou ser atendida, morta de tesão. Naquele momento ninguém seria capaz de saciar sua vontade – somente ele. Perscrutou ávida, na vitrine, aquele que melhor lhe agradava, mas todos eram lindos e maravilhosos, todos eram SÓ PARA ELA, MEU DEUS!, quase não cabia em si de tanta alegria por haver tantas opções...! Meteu a mão nos bolsos para ver quanto dinheiro ainda tinha, e se de repente não pudesse pagar por um luxo daqueles? Seria a pior morte de todas. Mas aí veio o rapaz de jaleco branco meio desabotoado, ela fez seu pedido e EM BREVE SERIA FELIZ NOVAMENTE! Logo, logo poderia encontra-se com aquele que daria sentido à sua vida de prazeres, logo poderia jogar-se nos braços da melhor invenção do homem: o chocolate.

Então o pedido chegou e ela comeu comportada.

domingo, maio 18, 2008

Meu tempo dos outros

"Trabalhei com recreação de crianças terminais que sofriam de câncer. Num dia, uma criança estava brincando comigo e, no dia seguinte, ela não estava mais. Eu tive a noção do irreversível, da passagem do tempo, da finitude. Ali conheci a morte de perto".
- Ney Matogrosso

Se meu tempo for extremamente curto, que a vivência seja extremamente longa, intensa e afável. Que eu arranje mais brigas para comprar, mais pessoas para ajudar, mais lutas e mais cascas para perder. Que eu aprenda a ser uma pessoa desmesuradamente boa, porque o mundo não é bom, e que eu perpetue por aí todo o amor fecundo que eu soube cultivar. Que eu saiba enrijecer sem perder a ternura, e que eu ganhe alguma recompensas, porque ninguém é de ferro!

E no fim o meu tempo é o tempo dos outros que caminharam comigo.

sexta-feira, maio 09, 2008

Perfil: o Gilson da banca


A banca do Gilson é o maior estabelecimento do gênero no campus da Universidade de Brasília. Localizada na entrada do Centro de Vivências Sul (UDFinho), está ali desde 1977. O dono, Gilson Queiroz, saiu do Rio Grande Norte ainda bebê, chegando à capital em 1961, junto aos sete irmãos, o pai e a mãe, que já mantinham uma banca de revistas. Gilson e mais dois irmãos herdaram o talento para o comércio – os outros enveredaram por caminhos diversos, como a enfermagem e o jornalismo. Antes de ele abrir sua banca na UnB, seu irmão já era dono de uma em Sobradinho.

Antes de fixar-se no local onde está hoje, a banca do Gilson passou por diversos pontos do campus. Já ficou ao lado do Restaurante Universitário (que também já mudou de lugar), ao lado da barbearia do Chico, e no local ocupado hoje pela Caixa Econômica (onde esteve por oito anos). A história da banca começou num tempo em que a Universidade era "praticamente deserta" de comerciantes. Enquanto era deslocado de um lugar a outro, Gilson vivenciou o crescimento e o fechamento da Só Livros, grande livraria que ocupava uma porção generosa da Ala Sul do ICC, além da abertura de um comércio finalmente organizado na UnB.

Nos tempos da ditadura, quando a banca era um "amontoado de grades", Gilson vendia escondido jornais alternativos, como O Movimento e O Pasquim. Hoje, reformada, a banca vende revistas nacionais e importadas (desde eróticas às de arte e design), jornais, gibis (líderes de vendas), livros, incensos, camisetas, doces e refrigerantes. O tempo lhe trouxe duas certezas: a de que as assinaturas de revista esmagaram as vendas em bancas , e a de que a consciência política dos jovens piorou, mesmo depois da ocupação da reitoria. Como forma de compensar a venda irrisória de revistas, Gilson precisou diversificar-se: é por isso que, hoje, bancas de jornal vendem também refrigerantes.

O tempo ainda lhe deu a capacidade de manter relações duradouras com seus clientes, além da oportunidade de ver gerações inteiras passar pelo estabelecimento. Houve casos em que clientes seus casaram e tiveram filhos, que tiveram filhos que estudam hoje na UnB. Além de conversar com os clientes, sorrir e comentar pouca coisa sobre as últimas notícias, Gilson gosta de ligar o som e ouvir música erudita, jazz ou blues enquanto trabalha. "É de berço", justifica-se. Gilson é espírita, e o que a religião lhe ensinou,junto aos 49 anos de vida, foi que "ninguém é conhecedor da verdade. O que importa é respeitar as pessoas, além de sorrir para a sorte abrir".

confira mais no campus online

quinta-feira, abril 24, 2008

Carta de amor

Meu bem,

Há três dias aquele caroço de alguma-coisa jaz no chão do banheiro. Aquilo parece uma barata. Eu entro no banheiro, e, mesmo antes de acender as luzes, vejo o troço no chão e acho que é uma barata. Sempre levo um susto. Você ia gostar se eu deixasse uma azeitona preta dentro da sua caneca preferida e você achasse que era um cocô de bode? Por que você não tirou o negócio de lá ainda? Isso é típico seu: sair pela casa espalhando as coisas como se elas fossem perfume, por mais horrendas que sejam.

Outro dia cheguei tarde e você ainda não tinha dado um jeito nas toalhas molhadas. Você sai do banho, usa todas as toalhas disponíveis e joga tudo no chão! Emboladas, ainda por cima. Você podia pelo menos estendê-las no chão, pra secar mais rápido. Mas NÃO! Eu chego e elas estão úmidas. O pior é que eu sempre acho que elas estão úmidas de suor, porque você aprendeu com aquela sapa da sua mãe a enxugar a testa toda hora com qualquer toalha que aparece na frente. Credo!

Um último lembrete: tem suco de uva na geladeira, daquele que você gosta. Eu comprei. Mas peloamordeDeus não vá fazer baderna na cozinha, porque você adora abrir os sucos e, sem óculos, por causa dessa miopia idiota, você sai pingando metade da garrafa no chão, sendo que a Raimunda acabou de encerar o porcelanato. Tem biscoito também, mas não come tudo porque eu quero experimentar!

Nos vemos mais tarde, deixe a casa em ordem,
beijo.

quarta-feira, abril 16, 2008

Neurose como necrose

Vocês maldisseram o próprio nome e afundaram no egoísmo. Vocês pegaram a carne de suas carnes e engoliram-na palpitante, e derramaram seu sangue no chão. Vocês confundiram amor com miséria e julgaram os outros. Interpuseram obstáculos onde não os havia, e erraram fatalmente ao tolhir a própria liberdade. Vocês desfizeram os quebra-cabeças e andaram para trás; retrógrados!, vocês se extinguiram pouco a pouco. Vocês não enxergam a liberdade porque estiveram cegos desde sempre; admirar a luz verdadeira lhes custará os olhos. Vocês estão confusos. Ah, a aprendizagem será dolorosa, difícil, e lhes comerá a pele lentamente, como a pior das torturas. Porque vocês procuraram intensamente a Deus, mas só acharam a dor, a tristeza e a morte.

quinta-feira, abril 03, 2008

As fotos de Carlota

Alojada logo abaixo da janela, Carlota desviava a cara feia da luz inclinada, alaranjada e quente, bonita, mas quente; preferia ficar ali a fugir totalmente do calor, porque era ali que podia se redimir, chorando à vontade. Pegou o pequeno baú verde e envelhecido, lotado das coisas dignas de se guardar em baús, como um refugo de memórias assustadas que devem ser esquecidas, mas para Carlota funcionava como uma catarse por meio do passado. Abriu o caixote e olhou as fotos sépias, carcomidas, algumas meio queimadas, mas quase invencíveis ao tempo, porque Carlota até podia morrer, mas as fotografias ficariam para sempre. Olhou uma a uma, seguindo o ritual semanal, e como sempre tudo começou com um tremor sutil, depois a mão resfolegou e quase tombou o baú; primeiro a mãe, o pai, a avó, o avô, os filhos, o marido, todas as pessoas que já estiveram com ela, e que agora caíam para os véus da eternidade, e Carlota foi acometida de tremeliques violentos que lhe sacudiam o penteado horroroso, o batom escandalosamente vermelho borrou ao prenúncio de um gemido, o nariz fungou com um barulho que os vizinhos gostariam de evitar, e as lágrimas respingaram enfim como um gozo quente e descontrolado, escorrendo pela janela e evaporando ao encontro cálido com a luz inclinada.

Até que Carlota parou de tremer e suas tristezas equivocadamente solitárias voltaram ao pó.

terça-feira, março 18, 2008

Confessionário

Elevadores já eram estranhos por natureza: um mundo cercado de barulhos misteriosos e rangidos desconfortáveis, além de pessoas relapsas que morriam sozinhas, em fossos escuros. Eram também os lugares propícios para pregar avisos sobre o condomínio ou alfinetar o vizinho de cima, com avisos indiscretos sobre barulhos inconvenientes às 4 da manhã ou cachorros de patinhas irritantes. Os elevadores mais modernos continham inúmeros avisos e dicas de procedimentos em casos de emergência: evite em caso de incêndio, verifique se o mesmo encontra-se neste andar, não aperte este botão, ligue para a portaria em caso de emergência. Logo abaixo, um simpático interfone. No entanto, naquele edifício bem específico, para o qual a recém-casada Ameli acabara de mudar-se, no lugar do interfone havia só um aviso: "fale com a portaria", grudado na cabine do elevador com uma simples fita crepe, e nada mais. Para onde Ameli deveria direcionar a voz? Para o alto? Para baixo? Para o aviso? Haveria algum microfone embutido? Um dia, da maneira menos confortável, Ameli descobriu.

Vinha superlotada de compras, as maçãs quase caindo dos sacos, mil latas, embalagens e plásticos que rangiam. A porta do elevador abriu como sempre: súbita e mal-educada, Ameli entrou sem respirar e jogou as compras no chão; quase não sentia o sangue nos braços. O fantasma do aluguel crescia como um câncer, e as contas atoladas eram uma ferida aberta e sangrenta, como uma boca obscena que crescia mais e mais, indecente e pornográfica ao encontro do dinheiro que nunca chegava. Ameli mal respirava, tentando suportar a saia molhada e os sapatos enlameados, por causa da chuva que destruía tudo lá fora. E de repente um raio, um trovão, a luz acabou e o elevador parou no escuro.

A reação impensada de Ameli foi retirar o celular da bolsa para conferir as horas. Eram quase 8h, e o crápula do marido chegaria em breve, mas por uma manobra do destino não se veriam no elevador. A luz azul e meio extraterrestre do celular iluminou a cabine de forma ominosa, a ponto de Ameli ver o aviso em fita crepe: "fale com a portaria". Parecia um bom conselho. Ela estava só, afinal, carente, num escuro que assustava, o porteiro devia querer conversar às vezes. Chegou bem perto do aviso, encostou a testa na parede fria e começou com um oi. "Oi. Não queria fazer isso, tenho vergonha. Odeio ter vergonha, por que sou tão recatada? Por que sou tão sobrecarregada das coisas? Não devia ser tão infeliz, mas sou, deveria haver um motivo também?" Lembrou-se do marido, que recebia sempre a visita do mesmo amigo aos sábados e domingos, não era amigo coisa nenhuma, Ameli sabia que ela dava as costas e os dois começavam a se comer. "Meu marido também não gosta de mim, mas eu quase nunca tenho tempo pra conversar sobre isso, porque de manhã cedo saímos para trabalhar e ao fim do dia ficamos presos no elevador. Estou com medo de estar realmente casada com ele. É, acho que não ter tempo para discutir a relação significa estar bem casada. Não sou boa cozinheira, mas isto é uma questão de honra em toda minha família, como assim eu não sou boa cozinheira? Mais uma coisa que preciso ser na vida. No fundo eu sei que não sou nada". E aí Ameli hesitou se devia chorar mesmo ou só fungar, fingindo. Decidiu chorar. "Não posso chorar. Posso chorar? Não sei se você está me ouvindo; será que estamos chegando a algum lugar?" Limpou as lágrimas, mas não conseguiu interrompê-las. "Hoje fui fazer compras. Não, não é assim que se começa. Deixa pra lá. Sou um fracasso mesmo". Ameli ficou minutos no escuro, sozinha e terminando de chorar, até que a vontade passou e ela respirou fundo, retomando a calma, mas com o rosto ainda sujo de lágrimas. "Obrigada, portaria".

Então a luz voltou e o elevador terminou de subir.

segunda-feira, março 10, 2008

A princesa, a gazela, a canção e o cavaleiro (e o bosque)


Era uma vez uma princesa muito bonita (não, bela), muito bela que se chamava Jolie. Ela morava num grande casebre decadente, no meio de um bosque que cheirava a pântano. Dentre todos os animais do bosque, ela adorava uma gazela que era seu (seu... ixe, e agora? já sei) animal de estimação. Ela sempre saía para passear cantando uma bela canção romântica (nota: essa frase ficou ruim, pôr em outro lugar).


Um belo dia, quando ela dava de comer à gazela, de repente ela viu uma cena horripilante. Um lobo perigoso se aproximou dela e aí atacou a gazela. Sutilmente (subitamente?) ela foi tomada de pânico e começou a gritar doidamente. Um cavaleiro escutou seus gritos. Rapidamente, ele chegou em seu grande cavalo negro e disse: "Madame, temeis nada! Eu vou vos ajudar!" Em seguida, ele manejou a espada em direção do lobo e salvou a princesa e a gazela. A princesa, muito feliz e encantada com aquela bravura, abraçou ele amorosamente. Eles viveram felizes para sempre.


(tia, terminei)


Technorati Marcas: ,

quinta-feira, fevereiro 28, 2008

Nouvelle vague

"Que bom que você demorou".
"Ah, é? Por quê?"
"Porque aí eu não precisei me preocupar com um engarrafamento demoníaco mais para trás, nem com a chuva (as pessoas já não sabem dirigir sem chuva, com chuva menos ainda), e nem com esses desvios que a polícia fez por causa das obras nas pistas. Aqueles cones só atrapalham o trânsito. Sabia que eu já derrubei alguns? E essa calça rasgada no joelho, de onde você tirou isso?"
"Então, eu usei só uma vez quando fui à fazenda dos avôs da Rê, e todo mundo achou estranho. Eu vou usar agora por causa da homenagem e tudo o mais, aquele foi um momento legal e foi o único dia em que os outros me viram com a calça, é claro que a Priscilla vai achar estranho, mas..."
"Espera, deixa eu trocar o CD"
"... mas, ah, tá. Diminui um pouco, tá alto. Pronto. Você viu que aquele cara perdeu 25% da audição depois de passar um tempão ouvindo música alta com fones de ouvido? Meu, 25% é muita coisa. Muita coisa".
"É mesmo? Não fiquei sabendo disso não..."
"Mas enfim. Eu também trouxe um cabo extra e pilhas de reserva, porque eu lembrei aquela vez que você reclamou das pilhas viciadas da sua câmera, hahaha, foi tão engraçado! Ei, cuidado, aquele gato vai atravessar".
"Por que diabos as pessoas não adotam logo esses bichos em vez de comprar? Outro dia eu fui para a yoga e tinha um gato esmagado no asfalto como se fosse um papel, entendeu? Ele era preto. Dava pra ver o formato do corpo direitinho... Só que do seu crânio amassado saía um líquido amarelo supernojento que ia escorrendo assim pela rua..."
"Eeeeco! Ainda bem que eu não vi iss..."
"É aqui?"
"É, pode virar aqui, vira aqui. Aí você dá seta e desce por essa rua (pode ir de segunda marcha). Freia! Pronto. Agora reto, e você entra no estacionamento do McDonald's".
"Mas eu não sei onde é, não é melhor eu..."
"Não, ó, vira ali onde aquele carro virou".
"Tá. Pronto, chegamos. Gostou da carona?"
"Gostei. Obrigado por me aturar".
"Nada, 'aturar' você é o que me deixa mais feliz".

quinta-feira, fevereiro 14, 2008

That Time

Lembra aquela época em que eu achei uns dentes de ser humano no quintal? Eu vinha fumando Marlboros e Carltons e você me perguntava por que essas marcas têm nomes com L e R juntos, e me mandava apagar os cigarros, aí me dava mexericas em caixa para esconder o hálito; o cheiro ácido espalhava-se pela casa. Lembra aquela época em que queríamos escrever e montamos um blog que não tinha a menor lógica de formatação? Lembra aquela época em que eu só lia os rótulos de sucrilhos e você só lia as coleções de livros de coleções? Mamãe me enchia o saco por eu me encher de tantos sucrilhos. Onde estará mamãe agora?

Lembra aquela época em que eu morria de rir por coisas bobas e você me recriminava com chantagens? Eu deitava no tapete e a gente brincava de ouvir o começo das músicas e adivinhar os cantores. Em seguida procurávamos nomes estranhos na internet e tentávamos adivinhar a origem de cada um, o país, a etnia e a cultura que evocavam. Víamos fotos, e as melhores colávamos no Paint, e bagunçávamos tudo. Lembra depois quando eu tentei salvar um passarinho manco, mas ele morreu minutos depois, por não conseguir voar? Você tentou me consolar, dizendo que assim nenhum gato de rua iria comê-lo. Lembra quando minhas cores preferidas eram vinho com azul-piscina, e as suas preto e branco? Lembra quando montamos uma horta que deu errado, mas depois plantamos begônias e elas nasceram lindamente? Lembra quando eu plantei meu primeiro dente-de-leão sobre seu túmulo, em memória à época em que soprávamos dente-de-leão no parquinho?

Onde estará você agora?


1. baseado em música de Regina Spektor de título homônimo
2. as músicas dela são muito boas pra escrever essas coisas.

quinta-feira, fevereiro 07, 2008

De volta da Grande Guerra


Na tarde passada, um cadáver chegou para o chá.

Partira há muito para a Grande Guerra e desde então não ouvíamos falar nele. Era o melhor vizinho do bairro, o mais exemplar, cavalheiro, educado. Gostava de agradar as crianças dando-lhes doces, e agradava as mulheres dando-lhes rosas.

Décadas após a Grande Guerra, quando a mansão do velho Kenneth - o vizinho - já era uma creche para crianças pouco educadas, eu saí para cuidar do jardim e achar minhocas na areia, que eu provava ocasionalmente e achava boa. Nada como colheradas generosas e obscenas daquela areia provocante. Aí, encontrei Kenneth lá no fundo. Cinza, seco, com uns poucos tufos de cabelo frágil no crânio sem pele. Estranhamente bonito. Kenneth usava seu terno desbotado e recendendo a vinagre, o mesmo terno que ele usava para passear e o mesmo que ele usara no dia em que fora à guerra.

Kenneth!, exclamei feliz. Nunca imaginaria encontrá-lo ali. Escondendo-se das belas donzelas, seu safado? Ah, venha cá me dar um abraço!, e abracei Kenneth. Seus ossos sob o paletó estalaram afoitamente. Kenneth, o que houve com suas pernas? Onde estão? Deixou-as lá, para uma vida mais prática? Quanta genialidade!

Kenneth exalava genialidade enquanto eu o levava até minha casa velha e vazia. Enquanto todos fraquejavam contra o frio, eu pus a cama na varanda. Eu pus Kenneth sobre a cadeira, sustentando-o com um graveto para que não caísse, mas que perfurou seu olho. E aí, Kenneth, chá ou café? Manejei o bule de café até a xícara mais próxima de Kenneth, mas estava pesado, eu estava sem força, e o café caiu nos dedos ressequidos do velho, e sua mão derreteu. Desculpe, Kenneth. Então, cara, o que você conta? Como foi lá? Kenneth? Por que você está tão quieto? Kenneth estava quieto, absurdamente. Tudo bem, vou buscar uns biscoitos, não saia daí!

Mas Kenneth saiu. Voltando, não o encontrei lá.

(baseado no vídeo Salad Fingers 7, por David Firth)

domingo, fevereiro 03, 2008

...seria uma abelha?

No andar de baixo, a empregada martelava a carne com tanta força que logo ficaria musculosa. Já era o prelúdio do que seria o almoço, e eram 3h da manhã. No andar de cima, um fiapo de cabelo no chão do banheiro parecia o esboço de um cavalo-marinho, ou o que seria o começo de sua espinha dorsal, se alguém estivesse desenhando. Mas naquele andar os três adolescentes foram perturbados por um zumbido profundo que crescia esporadicamente e minguava logo após, como o de uma abelha gigante e monstruosa que os viera rondar assustadoramente. As árvores que enfeitavam a cobertura farfalhavam loucamente, quase esquecidas por causa de uma névoa muito densa que descera sobre a cidade. Além disso ventava, e as cortinas dançavam com ousadia escandalosa. O zumbido esquisito, mais as árvores, a névoa, o vento e as cortinas compunham cenas sórdidas entre as quais os adolescentes tiveram de se virar. As horas passaram e muitas conversas vieram, entre as quais alguma coisa sobre mães protetoras, o desaparecimento da timidez emparelhada com a auto-aceitação, e Paprika. Mas o barulhinho atazanante permanecia incólume. Alguém lembrou, para si mesmo, um comentário longínquo sobre zumbidos de ETs e cabeças que explodiam. Eles foram obrigados a enfrentar seus medos, como naquelas fitas de meditação que recomendam "pense num lindo jardim primaveril. deixe seus medos...". Munidos de almofadas, desceram as escadas e suprimiram diversos gritos silenciosos, que explodiam na garganta e morriam na boca como um engasgo, porque a cidade inteira dormia e acordá-la com um grito medroso seria um erro. De modo que desembocaram na sala vibrando de emoção, os corpos contorcidos por dentro, todos aqueles berros contidos... acenderam as luzes e não viram nada. As coisas estavam em seus devidos lugares; tudo parecia respirar placidamente. Eles poderiam descansar tranqüilos.

No entanto a memória do zumbido permanecia viva em suas orelhas.

sábado, janeiro 19, 2008

Catarse no táxi


Foi recebido por uma tempestade assustadora, um céu irreconhecivelmente cinza, não era possível que aquele céu fora azul um dia, depois veio um vento que trazia água para os cantos mais escondidos, e o menino se perguntou por que não havia ali um aluguel de casacos, moletons e afins. A blusa verde, suja e suada, posteriormente muito suada, tremulava ao gosto do vendaval como uma bandeira. Dentro do táxi, depois de um lanche desesperado, bateu o cansaço. Lá fora, o motorista encaixava a bagagem no porta-malas de uma maneira sofrida, atrapalhado por uma corcunda que lhe acentuava os ares de mordomo sinistro. Já a caminho de casa, o menino baixou a cabeça até quase virar um pombo e esquecer a dor misteriosa no ombro esquerdo. Durante o trajeto muito lento, que o taxista parecia percorrer de propósito, para irritar os passageiros, o som monocórdico dos limpadores de pára-brisa causaram-lhe os pensamentos mais improváveis, como o preconceito difundido pela Igreja em relação ao Espiritismo, a inépcia das pessoas em não repensar seus valores, a beleza lírica dos pingos arrebatados pelos limpadores, a delicadeza das ervilhas escondidas dentro das casquinhas, a textura apaixonante de brócolis bem feitos, o crescimento avassalador do trânsito na capital, e a cobertura verde que é tão benéfica porque não deixa toda essa água inundar a cidade, amém. Levou um susto ao se reconfortar pelo fato de, finalmente, estar em um território onde se entende de comida sem cadáver. Mas aí já era tarde demais, porque o taxista virou na curva errada e entrou numa rampa de garagem, até perder o controle do carro e bater com violência no portão. O carro foi violentamente amassado, os estilhaços voaram loucamente como uma chuva que vai pelo caminho contrário, rebelde, e, ainda morrendo, o menino continuou a ter pensamentos. Dizem que foi uma morte tranqüila, daquela que as pessoas mais almejam.

quarta-feira, janeiro 02, 2008

Katamaris em dezembro


AH!, o prelúdio dos dias veranis, e depois se descobre que o sentido da vida é a LUZ INCLINADA! A grama verdinha e brilhante, nunca pisada, convida a uns amassos sóbrios na frente dos lugares mais improváveis, na companhia dos turistas desavisados que se divertem com a incidência rasteira da luz solar, registrada na máquina fotográfica como um compêndio de bolhas de sabão. Neste caso, as sombras convergem tais como aliens na relva e vão parar lá no museu do índio (?). Tudo parece libertador e extraterrestre. O capim dialoga eloqüente com a ionosfera, e se parece com antenas parabólicas que pinicam a pele dos que vão desrespeitar as placas de "não pise esta grama linda". As ondas de rádio passam velozes pelo éter, e o capim recebe tudo, manda tudo para a terra, fecunda tudo, e o planeta vira informação, educação e entretenimento. Os cachorros descem para passear mais cedo, 7h30 e já uma luz maravilhosa, 19h30 e a mesma luz se repete. Antes que o sol se deite mais e tudo fique cinza-incômodo, por que não dobrar as pernas em 90º em relação ao corpo e fingir cair na estratosfera?