terça-feira, março 18, 2008

Confessionário

Elevadores já eram estranhos por natureza: um mundo cercado de barulhos misteriosos e rangidos desconfortáveis, além de pessoas relapsas que morriam sozinhas, em fossos escuros. Eram também os lugares propícios para pregar avisos sobre o condomínio ou alfinetar o vizinho de cima, com avisos indiscretos sobre barulhos inconvenientes às 4 da manhã ou cachorros de patinhas irritantes. Os elevadores mais modernos continham inúmeros avisos e dicas de procedimentos em casos de emergência: evite em caso de incêndio, verifique se o mesmo encontra-se neste andar, não aperte este botão, ligue para a portaria em caso de emergência. Logo abaixo, um simpático interfone. No entanto, naquele edifício bem específico, para o qual a recém-casada Ameli acabara de mudar-se, no lugar do interfone havia só um aviso: "fale com a portaria", grudado na cabine do elevador com uma simples fita crepe, e nada mais. Para onde Ameli deveria direcionar a voz? Para o alto? Para baixo? Para o aviso? Haveria algum microfone embutido? Um dia, da maneira menos confortável, Ameli descobriu.

Vinha superlotada de compras, as maçãs quase caindo dos sacos, mil latas, embalagens e plásticos que rangiam. A porta do elevador abriu como sempre: súbita e mal-educada, Ameli entrou sem respirar e jogou as compras no chão; quase não sentia o sangue nos braços. O fantasma do aluguel crescia como um câncer, e as contas atoladas eram uma ferida aberta e sangrenta, como uma boca obscena que crescia mais e mais, indecente e pornográfica ao encontro do dinheiro que nunca chegava. Ameli mal respirava, tentando suportar a saia molhada e os sapatos enlameados, por causa da chuva que destruía tudo lá fora. E de repente um raio, um trovão, a luz acabou e o elevador parou no escuro.

A reação impensada de Ameli foi retirar o celular da bolsa para conferir as horas. Eram quase 8h, e o crápula do marido chegaria em breve, mas por uma manobra do destino não se veriam no elevador. A luz azul e meio extraterrestre do celular iluminou a cabine de forma ominosa, a ponto de Ameli ver o aviso em fita crepe: "fale com a portaria". Parecia um bom conselho. Ela estava só, afinal, carente, num escuro que assustava, o porteiro devia querer conversar às vezes. Chegou bem perto do aviso, encostou a testa na parede fria e começou com um oi. "Oi. Não queria fazer isso, tenho vergonha. Odeio ter vergonha, por que sou tão recatada? Por que sou tão sobrecarregada das coisas? Não devia ser tão infeliz, mas sou, deveria haver um motivo também?" Lembrou-se do marido, que recebia sempre a visita do mesmo amigo aos sábados e domingos, não era amigo coisa nenhuma, Ameli sabia que ela dava as costas e os dois começavam a se comer. "Meu marido também não gosta de mim, mas eu quase nunca tenho tempo pra conversar sobre isso, porque de manhã cedo saímos para trabalhar e ao fim do dia ficamos presos no elevador. Estou com medo de estar realmente casada com ele. É, acho que não ter tempo para discutir a relação significa estar bem casada. Não sou boa cozinheira, mas isto é uma questão de honra em toda minha família, como assim eu não sou boa cozinheira? Mais uma coisa que preciso ser na vida. No fundo eu sei que não sou nada". E aí Ameli hesitou se devia chorar mesmo ou só fungar, fingindo. Decidiu chorar. "Não posso chorar. Posso chorar? Não sei se você está me ouvindo; será que estamos chegando a algum lugar?" Limpou as lágrimas, mas não conseguiu interrompê-las. "Hoje fui fazer compras. Não, não é assim que se começa. Deixa pra lá. Sou um fracasso mesmo". Ameli ficou minutos no escuro, sozinha e terminando de chorar, até que a vontade passou e ela respirou fundo, retomando a calma, mas com o rosto ainda sujo de lágrimas. "Obrigada, portaria".

Então a luz voltou e o elevador terminou de subir.

4 comentários:

Anônimo disse...

Patinhas irritantes e barulhos às 4 da manhã? Senti uma certa inspiração na minha vizinha... huahauahauahaha!

ImaGINE disse...

PERFEITO!

Anônimo disse...

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=O
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Arrasou.
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