segunda-feira, outubro 29, 2007

Oba, acabaram as cigarras!

Oba, acabaram as cigarras!
A falta de chuvas ajuda a fortalecer o caráter, as cigarras só irritam as pessoas.

Observem o menino que se abana com volúpia no sofá. Ele pensa numa manifestação em praças públicas para a queima de cuecas e outras roupas de algodão. De agora em diante, apenas os tecidos de viscose serão permitidos. Seus pés têm a aparência suja de que suaram o dia inteiro, entraram em contato com a poeira e a fuligem secas que sobrevoam o asfalto e grudam nos chinelos. A pele de suas coxas grudou no couro sintético do sofá, e agora ele não ousa se mexer, porque sabe que qualquer movimento vai doer profundamente, como uma depilação em câmera lenta. O computador exala calor, que vai de carona com o barulhinho constante da CPU – vuuuu... Seu quarto, que funciona como um oásis nessas ocasiões, porque tem um ventilador silencioso, está repleto da presença da mãe, que ligou a TV para ver novela. Na superfície também quente do televisor, Suzana Vieira parece a Cher. Ela olha para a câmera e faz uma cara de deusa suprema, que ocupa o imaginário de cada espectador, de um jeito que faria a teoria hipodérmica fugir com medo. A noite prossegue quente e sem cigarras, porque ninguém precisa delas, ainda mais nesses dias gelatinosos de outubro, que têm gosto e cheiro de sangue que escorre pelo nariz de madrugada e fica seco no rosto. Umidade é para os calangos.

quarta-feira, outubro 24, 2007

Acabou a manteiga



Oba, acabou a manteiga!
O ferro ajuda a construir um país forte, a manteiga só engorda as pessoas.

Em uma dessas manhãs frias e tenebrosas que anunciam a guerra e a morte, os integrantes da família Volks acordaram cedo e desceram correndo para a mesa do café, em que os aguardava uma toalha desbotada e com migalhas do pão ralo do dia anterior. Abriram a geladeira, e de lá saiu o cheiro da sopa (também rala) que preparam para os almoços da semana. Quando o entregador de jornais passou pela janela, montado numa bicicleta que rangia, o cachorro da família latiu ferozmente, o que espantou o entregador e o fez largar a bicicleta à porta dos Volks.

Cada integrante pôde arrancar um pedaço tenro e saboroso da bicicleta, e todos se serviram à mesa. O bebê Luke, 1, ria satisfeito enquanto mastigava, com a gengiva, partes crocantes dos ferros. Tudo foi aproveitado na refeição: banco, guidão, rodas e correntes. A Volks mais idosa, Anne, 50, avó do bebê, devorou tudo que lhe coube, e garante que o óleo serve como ótimo tempero. "Nunca comi coisa melhor. O governo está certo: o ferro ajuda a construir um país forte. Quem precisa de manteiga?"

fotomontagem de John Heartfield

terça-feira, outubro 16, 2007

Voltar ao pó


Em 1990 (por aí) eu tinha enormes bochechas e usava escondidos os Rayban de minha mãe, porque ficavam mega-sexies etc. Foi nesse ano que fomos a Natal, e foi nas praias natalenses que meu corpo pequeno e irresponsavelmente bronzeado era açoitado pelos vendavais de areia (depois o destino me mandaria àquelas terras mais seis vezes). Ainda era a época em que hospedávamo-nos corajosamente em casas alugadas e sobrevivíamos à boa vontade dos nossos relapsos. Foi assim que, cansado da enrolação paterna, eu tirei a roupa, vesti a sunga e saí percorrendo a praia, naqueles passinhos corridos das crianças que acabaram de aprender a andar. O sol me recebia com fé e eu encarei o mar com as vistas nuas, e depois entrei lentamente na água, porque lá eu sabia que os ventos com areia não iriam me atingir.

Então veio uma mulher. Ela chegou a tempo suficiente para que eu não sentisse a falta dos pais que eu havia perdido após minha decisão resoluta (àquela altura, minha mãe, esbaforida e quase inconsciente, percorria a vizinhança, e meu pai ainda conversava com a vizinha). A mulher perguntou meu nome e minha procedência, e eu a levei até a casa que nos servia de abrigo. Foi um reencontro emocionante e cheio de agradecimentos, mas eu, pequeno, via só pernas.

Do pó vieste, e ao pó hás de retornar.

domingo, outubro 14, 2007

A devolução do DVD

Um cliente revoltado abandona a loja a passos de criança emburrada e o próximo cliente se aproxima timidamente do balcão, entrega os DVDs num plástico humilde e rasgado e volta a perguntar:
"vocês têm mulheres à beira de um ataque de nervos?"
"tem mulheres à beira de um ataque de nervos aí, gerson?"
"ah, tinha... mas não está mais na loja".
"desculpe, senhor, não está mais na loja, e seus DVDs ficaram em 7 reais e..."
"eu já paguei".
"ah?, para qual funcionário você..."
"era o moço com cara de nuvem".
"FELIPE!!!"
O Moço com Cara de Nuvem sai da seção pornô carregando umas coisas indecorosas que até Deus duvida. Olha o garoto como quem remói uma longa história e cai num silêncio profundo, que é logo rompido por uma criança birrenta que vasculha uma prateleira, ao fundo. O moço enfim confirma que o cliente pagou em-di-nhei-ro.
"e olha o que eu achei!", completa, ofegante e vermelho, "é o mulheres à beira de um ataque de nervos, que estava na seção pornô por engano".
E foi assim que o chefe da locadora, vendo a cena embaraçosa, deixou que o garoto levasse um Almodóvar de graça.*
*
é uma pena que se trata de uma ficção, uma história inventada; eu teria ficado feliz.

quarta-feira, outubro 10, 2007

O sumiço do DVD


O moço da locadora (acho mais fácil chamar assim, é genérico etc) trabalha avidamente em seu computador.
"Moço, tem mulheres à beira de um ataque de nervos?"
(esse título não precisava ser tão grande, mas que idéia)
Moço genérico olha para a tela com cara de nuvem e responde:
"Tem sim, está na seção dos cults".
Moço genérico acompanha garoto sonhador de olhos chorosos (este sou eu) e os dois vasculham loucamente as prateleiras, mas nada encontram. Moço genérico some, procura na seção de dicas, de comédias, dramas, de "arte" (?), mas não há nada lá. A seção de "arte" é a mais arbitrária, é ali que ficam os filmes que marcaram época, alguns alemães, umas coisas antiqüíssimas, e alguns asiáticos quaisquer. Alguns adolescentes estacionam no meio das prateleiras, e dificultam a locomoção do garoto choroso. Moço volta e diz, ainda com cara de nuvem:
"É, pelo jeito não está na loja", e olha para o teto, procurando conforto e refúgio para a reclamação que não vem. Fica por isso mesmo. Garoto sonhador de olhos decepcionados sente-se forçado a alugar um drama com a Cate Blanchett, outro com chinesas hedonistas que dão pra todo mundo e outro do Almodóvar, para substituir o mulheres. Afinal, o feriado era para ser bom.

segunda-feira, outubro 08, 2007

Querido mundo,

Estou muito assustado (mesmo) por saber que não há previsão de chuvas para a primeira metade deste mês. Resolve isso logo, meu.

Grande abraço,
um habitante.


P.S.: eu sei que isso não é problema seu, mas ah.