Oba, acabaram as cigarras!
A falta de chuvas ajuda a fortalecer o caráter, as cigarras só irritam as pessoas.
Observem o menino que se abana com volúpia no sofá. Ele pensa numa manifestação em praças públicas para a queima de cuecas e outras roupas de algodão. De agora em diante, apenas os tecidos de viscose serão permitidos. Seus pés têm a aparência suja de que suaram o dia inteiro, entraram em contato com a poeira e a fuligem secas que sobrevoam o asfalto e grudam nos chinelos. A pele de suas coxas grudou no couro sintético do sofá, e agora ele não ousa se mexer, porque sabe que qualquer movimento vai doer profundamente, como uma depilação em câmera lenta. O computador exala calor, que vai de carona com o barulhinho constante da CPU – vuuuu... Seu quarto, que funciona como um oásis nessas ocasiões, porque tem um ventilador silencioso, está repleto da presença da mãe, que ligou a TV para ver novela. Na superfície também quente do televisor, Suzana Vieira parece a Cher. Ela olha para a câmera e faz uma cara de deusa suprema, que ocupa o imaginário de cada espectador, de um jeito que faria a teoria hipodérmica fugir com medo. A noite prossegue quente e sem cigarras, porque ninguém precisa delas, ainda mais nesses dias gelatinosos de outubro, que têm gosto e cheiro de sangue que escorre pelo nariz de madrugada e fica seco no rosto. Umidade é para os calangos.