terça-feira, agosto 10, 2010

Madalena estava exausta de tanta espera. Deitou-se como quem nada queria, ofegante, e lá ficou. Passaram-lhe várias coisas pelos olhinhos cansados, mas ainda vivazes. Madá, como também era chamada, viu as pernas passando de um lado para o outro. Viu as crianças que vinham interagir, mas ela nem ligou. Madá viu o caminhar do sol no céu e pensou. Viu as estrelas aparecendo devagarinho, e os olhos dela, como que se juntando a elas, brilharam mais um pouco também. Madá viu riscos coloridos lá no alto, mas aí já não sabia se era verdade mesmo ou se era coisa da cabeça dela. Também viu borboletas que vieram lhe contar segredos por baixo das orelhas caídas. Madá ouvia, dizia que sim e as borboletas iam embora. E, aí, Madá deu à luz quatro filhotinhos.

quinta-feira, junho 03, 2010

Voltando para a frente

Nessa internet maluca, uma coisa leva a outra. Encontram-se pequenos textos, que levam a fotos de objetos, que levam a fotos de pessoas, que levam a páginas e mais páginas desses retratos, que levam aos amores da sua adolescência - nesse ponto vem um estranho sentimento de retorno no tempo que, na verdade, é uma espécie de avanço; deparar-se com registros antigos de momentos profundos é, ao mesmo tempo, retrabalhar tudo o que se viveu tendo por base essa mesma memória. É por isso que voltar no tempo não é, exatamente, voltar, mas sim relembrar com um algo a mais. As lágrimas e os sorrisos parece que adquirem outros sabores.

Não ficou claro? Pas grave. A internet é maluca mesmo.

sexta-feira, maio 07, 2010

Raquel

Raquel e eu não suportávamos o barulho da turma nas aulas de Português, especialmente Gramática. Tínhamos uma paixão por Gramática que não sabíamos explicar, ela adorava escrever e eu, também. Sentávamos lá na frente durante as explicações do professor e anotávamos com afinco. Os livros de Biologia e História guardam ainda anotações e desenhos dela. Para além das aulas, eram as risadas dela que preenchiam uma boa parte do meu tempo, risadas altas e de um jeito peculiar, típico dela, que ninguém imitava. Raquel já veio aqui em casa fazer trabalho, conversava com minha mãe, falava desinibida. Era engraçada e me fazia rir, e dividia comigo um sonho para o futuro: fazer faculdade de Jornalismo.

No último ano do Ensino Médio, uma decisão minha nos separou: decidi mudar de turma. Raquel ficou triste, outras pessoas também, mas ela chorou. "Quem vai estudar Português comigo, quem vai me ensinar?", e eu respondia "Não chore, eu ainda posso tirar suas dúvidas, não chore, não chore".

Raquel deixou hoje uma legião de amigos, de sonhos e vontades. Em mim, deixou as risadas, o humor, os sonhos compartilhados e as anotações nos livros que devem estar por aqui em algum lugar. Nesses detalhes que ela deixou e nas memórias que imprimiu, Raquel continua viva, crescendo para sempre.

segunda-feira, abril 12, 2010

Os bons ares



Da primeira vez que vi Buenos Aires ao vivo ela estava mergulhada no comecinho de escuridão que faz depois das 18h. O sol se escondia lá atrás do Obelisco e a gente se apertava no carro, com a mala no colo, olhando pelas janelas os prédios antigos, novos, modernos, limpos, rachados, as pessoas brincando nas ruas, ocupando o espaço público de um jeito que em Brasília não há. Víamos os tetos, as antenas, as cúpulas, as abóbodas. Buenos Aires é cheia de cúpulas e tem um cheiro. Talvez seja do gás que eles usam para tudo: mover os carros, os trens, aquecer as casas. Buenos Aires tem trens, metrôs e ônibus, quiosques, elevadores antiquíssimos e manuais, e todos eles têm o mesmo cheiro de gás. Mas a sorte é que os ventos vêm lá do norte, do noroeste e do nordeste e se cruzam na capital Argentina e levam o cheiro embora. Levam também a tristeza e a amargura da vida diária. No fim fica o doce de leite na pele dos argentinos, um açúcar que vai subindo pela nunca e se embaraça naqueles mullets, no rosto europeu dessa gente simpática e grosseira que a gente vai vendo por que está tão perto e tão longe de nós.

O segredo dos argentinos está no alfajor que eles comem relaxadamente nas ruas, cruzando uma faixa, nos lenços que eles ajeitam meticulosamente no pescoço e na Mafalda que eles têm lá em San Telmo. Eles podem sentar ao lado dela quando quiserem e reclamarem em ll chiado o quanto a inflação está irrefreável e quanto a Cristina Kirchner é embotocada. A Mafalda escuta tudo e continua sorrindo.

quarta-feira, março 03, 2010

alto retrato

(não é um autorretrato; está mais para uma provável descrição de algo que poderia vir a ser. é completamente da ordem da possibilidade)

Lê muito, porque gosta e carrega esse prazer desde a infância, prazer que virou um senso de obrigação muito forte e só se sacia à noite, depois de umas páginas viradas. Faz pouco a barba e pensa muito nas coisas futuras, e diz pouco, o que lhe custa às vezes remoer por dentro e envelhecer uns cabelos que lhe vão caindo, caindo, caindo. Planta raízes nas pessoas, conhece-as em semanas e anos depois ainda se lembra delas, o que significa que é emotivo, sensível, passional. Honesto e puro não é, o maior alvo de suas mentiras é a mãe, mas os psicólogos diriam que é um mecanismo de defesa, jornada do ser para se manter em privacidade. Em suas caminhadas solitárias, a pé ou dentro do carro mesmo, porque é muito solitário a maior parte do tempo, gosta de arrancar as folhas dos arbustos e sentir o cheiro de agrião que sai deles. Arranca também as pétalas do pensamento, uma a uma, até que a corola fique nua, exposta e frágil, o núcleo de tantos tormentos. Dói muito por dentro por pensar em muitas coisas ao mesmo tempo, mas gostaria de pensar sempre mais. Está sempre descobrindo uma palavra nova, ou então formando palavras que não existem (e melhor ainda é quando inventa palavras que já existem). De um modo ou de outro, estanca e repete a palavra nova baixinho, saboreando cada sílaba. É quando passa através do vento e retoma os ares.

quarta-feira, fevereiro 24, 2010

Você de novo



Estava muito tedioso e quente aquela noite; saí para a rua, de chinelo, short curto e camisa sem manga. Não sou nenhum ator pornô em termos de corpo, tenho aquelas gordurinhas do lado etc. Você estava sentado no banco da pracinha, de pernas cruzadas, com um copo enorme de vidro na mão. Provavelmente fez como eu, saiu de casa para curtir a brisa noturna (estava quente mesmo assim, aliás). Você era muito elegante, cruzava as pernas num ângulo atraente, coluna reta, olhar pra frente, e um casaco preto de lã grossa em pleno verão. O líquido dentro do copo era escuro e tinha só um restinho, podia ser xarope de guaraná, suco de uva, coca-cola, chá preto, chá gelado. Mas com certeza era algo alcoólico porque você parecia sonolento; então guaraná com vodka, vinho, long island, cuba libre.

Depois houve um turbilhão de coisas e eu não sei o que veio depois do quê. Sei que houve dentes, gengivas, línguas, um tórax, pelos, hálito, bunda, roupa, grama, cimento. Acordei no dia seguinte com um machucado no pescoço SIM e não sei se foi culpa sua ou culpa de alguma outra coisa banal, tipo fazer a barba pensando no próximo livro a ler. Ah, e a gente conversou bastante antes de você se jogar em mim. Eu tentei me defender, lembro perfeitamente, só não sei se por causa do medo ou do meu amadurecimento precoce. No final eu não resisti e só restou a poça de suor ali no chão. Você era forte. Humm.

Lembrando agora, foi mesmo tudo igual a sempre, como sempre é. Todos os fantasmas se parecem e conhecer cada um a partir do 0 e constituir uma história dali é muito, muito trabalhoso e requer um silêncio que vem de dentro. Tem mais não.

ps.: saudade do tempo em que eu lia muito mangá. agora eu só leio coisas com citações.

domingo, janeiro 17, 2010

Santa Ceia

Mamãe, dos quadros religiosos que a gente viu ontem no museu, o que eu mais gostei foi o da Santa Ceia. Porque na Santa Ceia é todo mundo mal-educado, não tem essa coisa de garfo certo pra cada comida. A mesma coisa com os copos. Todo mundo pode comer com o garfo que quiser e com as mãos também. Na Santa Ceia tem umas pessoas levantadas, falando, apontando e mastigando de boca aberta. Já naquela época as pessoas comiam e falavam ao mesmo tempo. E apontavam também. Apontar não é falta de educação, pelo contrário, porque é assim que a gente pode entender quem foi o traidor e o culpado nessa história toda, não é mesmo? Sem falar que a Santa Ceia é muito diferente lá de casa, porque é você quem faz a comida e coloca no nosso prato. Na Santa Ceia quem faz tudo é o papai do céu. Maria, que não é pra gente saber que é ela porque ela está muito bem disfarçada, fica só olhando.