quinta-feira, setembro 27, 2007

Rato de esgoto

Enquanto o cartão de crédito era aprovado pelo sistema, debitando da minha conta um valor de 20,85 reais sabiamente gastos em material de leitura, um flanelinha entra na banca de jornais e resmunga para a dona, depositando um dinheiro no balcão. Contrariada, ela olha para mim e murmura, com ar de reprovação, abre uma gaveta que não consigo ver e entrega ao homem um cigarro qualquer. Ele diz um "obrigado" embolado e sai desengonçado. "Sabe como os policiais chamam esse maldito? Rato de esgoto", explica a dona da banca, com tanto nojo no "esgoto" que atrairia moscas. "Dizem que ele mata qualquer um. E o povo ainda pede pra lavar e vigiar os carros." Achando curioso que ela ainda venda cigarros para ele, saio da banca com a mochila nas costas e vejo Rato de Esgoto virando a esquina.

De repente eu percebi que tinha uma personagem, uma pauta e um texto de novo jornalismo.

quarta-feira, setembro 26, 2007

Hermanas


Seria útil entender os mecanismos do planeta, de vez em quando, para conhecer toda a lógica por trás da looooonga estiagem, do calor infernal, dos vendavais súbitos e misteriosos, e por fim das chuvas que não há. Pois ultimamente, e mais do que nunca, todos os dias são os mais quentes do ano. Em seguida, quando começa a primavera, as cigarras saem do chão e cantam para o nada, com nítido ar de dúvida. Percebem que não é o momento, e vazam. À noite, aparecem enormes vendavais, que fazem voar os papéis dentro das casas e anunciam chuvas fortes, mas nem.


Cigarras, hermanas, acordai.
(e, para hoje, uma foto didática.)

terça-feira, setembro 25, 2007

Não. Ouso dizer que minha admiração é maior, por ainda haver no mundo pessoas como você. E se os sorrisos são tão imensos, mais encantadores ainda são os olhares cúmplices, de gente que se entende e que se permite sentir o amor. Pois se não há amor na vida, a vida não tem sentido; o propósito de estar no mundo é aspirar o perfume dos outros, ouvir o coração dos outros, deitar no colo dos outros, afagar a cabeça dos outros, e dividir os momentos com os outros. E que me deixem, por favor, amar de verdade, porque este é o meu papel mais humilde no mundo. E que não me proíbam o amor, para que eu guarde as lembranças, e construa mais esta casa de mim.

E que venham infinitas outras lembranças. Para que eu me preserve em repouso neste ombro, de onde eu ouço a beleza do mundo e posso me completar no amar.

sexta-feira, setembro 21, 2007

Pinóquio

Finalmente estive no interior da baleia branca. Sempre altaneiro, este enorme mamífero dos mares exibia a graça de estar atolado numa calçada estranhamente ampla, que é o único espaço para pedestres em toda a cidade. Tem mil nadadeiras e mil caudas, e um esguicho gigantesco de água com fitas, que casa muito bem com a lua. Faz uma sombra enorme sobre aqueles que ainda se aventuram sob seu corpo diet, e, com uma língua enorme que deita ao chão, recebe a todos sentindo cócegas na garganta vermelha.

Lá dentro, o vácuo da carcaça faz um barulho que se confunde com silêncio. É o barulho das luzes, das sombras nos pilares, e dos elevadores que transportam turistas sem-noção que passam na frente da sua foto e ainda pedem pra você tirar foto pra eles. Daí você faz o imenso favor, entrega a câmera de qualquer jeito e sai deslizando pelas tripas da baleia, o que é uma das melhores sensações do mundo. Tudo é tão oco, silencioso e cuidadosamente iluminado que dá uma vontade imensa de correr para todos os cantos, numa tentativa inválida de preencher todo o espaço. É a mesma sensação de estar num hospital muito branco e grande. Lá embaixo, longas escadas fazem labirintos e conduzem a limpos banheiros (!). Frustrado diante da perspectiva de não ter encontrado nenhum tesouro, você volta para o estômago principal da baleia (sei lá, esses bichos têm estômago até no cérebro), vasculha os restos de comida, acha alguns cadávares e uns livros, desde Harry Potter até O Suicídio, passando por A Voz do Fogo e Sandman, que são leituras que eu recomendo. É aí que você lembra ser muito novo para morrer, faz cócegas no barrigão da baleia e é regurgitado com intensidade. E ainda consegue assinar o livro de visitas ("que lugar lindo :O Flávio, Brasília"). Lá fora, alguns gatos de rua caçam andorinhas estilosas, e eles ainda se mexem com elegância, para sair na foto; não se importam com seu estado deplorável, algas e sal no cabelo.

Dias depois, repete a dose com uma menina sensual de shortinho, que se deixa iluminar, como a Virgem, no âmago mais surrealista da baleia. Encontra colegas e faz amigos, toma sorvetes, e faz caridades. E fica com saudades da baleia.

Passeando com Guevara


"Os médicos identificaram uma ferida leve na batata da perna direita, oito tiros no tórax, hemorragia abundante, cabelos castanhos, encaracolados, sobrancelhas densas, nariz reto, marcas de nicotina nos dentes, uma cicatriz longa no dorso da mão esquerda, 173cm de altura e 'olhos levemente azuis'. Foi Martínez Casso quem amputou cirurgicamente as duas mãos de Guevara. Os cotos foram costurados. O cadáver de Che só se reconciliaria com as mãos trinta anos depois".
Revista piauí 12, p. 39



Os médicos foram obrigados a omitir a hora da morte, por razões políticas. Se não fosse uma necropsia casual, teriam relatado que os "cabelos castanhos, encaracolados" caíam por cima das "sobrancelhas densas" e perfaziam com o "nariz reto" uma expressão sensual que não sucumbia perante o sorriso cheio de "marcas de nicotina". Seu sex appeal seria assinalado ainda na modernidade, desbancando outras cafonices. Imagina, você é o líder revolucionário mais sexy a ter caminhado na Terra; então você morre com oito tiros, e durante a necropsia arrancam suas mãos, e ficam passeando com elas por aí, de um lado pro outro, durante trinta anos. E ainda mentem, dizendo que você foi devidamente cremado. Ninguém descansa em paz.

terça-feira, setembro 18, 2007

Morango podre


O menino acordava cedo e abria a despensa da cozinha; de lá saíam borboletas, e ele saía em Nárnia.


No dia mais quente do ano, acordou atrasado e saiu correndo; não conseguiu se arrumar a contento e vestiu a roupa mais desconfortável. Com a virilha repuxando por causa de alergias (dessas que vêm e vão), confundiu freio com acelerador, e quase bateu o carro. Enfrentou longas filas e gente suada. Comprou morangos orgânicos a um preço convidativo. Quase quebrou o dedo jogando baralho violentamente. Quase não teve dinheiro para tirar xerox. Comprou salada de frutas com moedas sujas, e assou demoradamente, pedaço por pedaço, numa sala quente com ventiladores ineficazes, onde os morangos ficaram podres. Saiu atrasado, enfrentou banheiro sujo, e enfrentou filas de carros. Os morangos cheiravam. Aspirou fumaça de caminhão, e sacolejou em buracos. Chegou esbaforido, e perdeu o documento do carro (imediatamente encontrado pelo morador do 507; obrigado, morador do 507!). Reparou na rachadura da janela, tomou banho frio, leu, comeu e escreveu. Checou emails, e ainda não trocou o livro. Abriu a despensa da cozinha, mas não viu as borboletas; viu apenas uma lagartixa cega, branca e crescida. Fechou a despensa com amargor, e não saiu em Nárnia.
Amanhã tem mais. Quem dera fosse em Nárnia.

sábado, setembro 15, 2007

Beneplasto II

Je veux écouter
la vie trop belle
qui nous attend
avec des papillions rouges
avec des rêves douces
avec des choses mignones


Penélope parou na faixa de pedófilos e aproveitou para exibir seus fonfons, suspendendo a roupa até a altura do queixo. Aplausos da natureza, lagartixas envergonhadas, grande comoção, impostos. Chegou a rodoviária, com as luzes ligadas e fazendo feijoada. Penélope vazou. Prostrada diante da arruaça, abriu sua camareira e pularam de lá os tijolos vazios de beneplasto. Fruta que caiu, cadê meu beneplasto? Só tinha o genérico, o beneplácito. Nem que a vaca tussa. Muu. Fula da morte, retirou do porta-botas um enooooooorme sandalhão de acrílico e saiu do tamborim, e foi se esconder atrás do chiqueiro mais próximo. O sandalhão era pra despistar a rodoviária. Só que a rodoviária viu tudo e desceu a cebola na mulher. Vários anos na carrocinha.

Incrível como as coisas se repetem. Culpa dos beneplastos, que, desaparecidos, cantavam Pato Fu:

"Vou ter crise de comportam e n t o
vou sorrir querendo chorAR
a músicA é f e i t a de s o n s
e os sons são feitos de AR
e agora que a banda p a s s o u
nada vai ficar, nada vai ficar, nada vai fic ar ..."



quinta-feira, setembro 06, 2007

Paprika III



Toda vez, quando deitada, imaginava que o caminho para o sono era galgado lentamente, em níveis graduais que começavam pela superfície da cama, e passavam por camadas cada vez mais profundas através da cama, enquanto as vozes surgiam em sua cabeça, e ela afundava sempre, sem receio, até chegar ao jardim encantado que havia debaixo da cama, onde enfim começavam os sonhos de verdade.

Lá, o mesmo caminho conduzia-a com o bucolismo da Terra dos Cem Acres, o que lhe provocava cócegas engraçadas na face, porque lembrava a infância, mas ela sempre chegava a lugares novos e desconhecidos, como na vez em que se deparou com um carrossel etéreo, girando sob um céu muito branco e situado num piso barato de cozinha. Os palhacinhos riam dela naquele misterioso carrossel das recordações. Havia o ranger do brinquedo velho, e a música psicodélica do parque. Os cavalos subiam e desciam numa coreografia enervante que era pura náusea. De repente, cheiro de pipoca. Algodão doce, sorvete, risos. Alegria. Um dente que caía graciosamente, ao gosto do vento. O mendigo que grudava nela como um chiclete inconveniente. A lentidão rumo ao rigozijo inatingível. Um cabelo longo e escuro, que subia graciosamente para o céu. Um tombo no chão, e enfim o despertar do sonho misterioso, acordando em outro carrossel.

(na foto, desenho de fu-ko ueda)

domingo, setembro 02, 2007

Sete coisas

O blog http://mentedivergente.blogspot.com/ me sugeriu este desafio. São 7 coisas que eu devo dizer sobre mim, vamos lá.

1. Eu fui uma criança bem feliz. Andei de bicicleta, viajei no tempo, conheci inúmeros países, fabriquei insetos e Pokémons, vi desenhos, joguei, dancei, tive brinquedos vários, ganhei pintinhos que viraram galinhas e hamsters que fugiram, peixes que morreram diariamente e tartarugas pegajosas. Aliás, só tive animais incomuns. Hoje posso dizer orgulhosamente que tive uma infância muito boa.

2. Ainda leio Turma da Mônica. É um hábito relativamente saudável, que me provoca risadas muito demoradas de vez em quando.

3. Tenho um olfato sensível, e um paladar razoavelmente apurado. De modo que posso sentir odores a distâncias consideráveis, e ainda agregar valor a tais odores. Todos os aromas me trazem lembranças de maneira muito intensa; eu me envolvo muito com eles. E não há nada que me deixe mais perturbado do que uma mistura descuidada de perfumes, como na missa. As pessoas vão muito perfumadas e sentam muito perto, os cheiros se misturam e eu fico impaciente. Aliás, pessoas muito arrumadas também me incomodam profundamente.

4. Eu tenho pavor a crianças. Gosto apenas das reservadas e pensativas, aquelas que ficam caladas em um canto e sorriem com inteligência quando você olha para elas.

5. E recentemente descobri que gosto muito dos grandes cães. Antes tinha medo deles. Depois tive um cachorro, e venci o medo. Agora admiro o andar paciente e a expressão otimista dos labradores, dos boxers, dos basset hounds. Eles têm um brilho nos olhos que é típico das amizades cúmplices.

6. Tenho medo de escuro. Pelo amor de Deus, não me coloquem sozinho num quarto escuro. Eu começo a ver coisas, suar frio, sentir arrepios, achar que alguém está atrás de mim, esse tipo de coisa. Quando desligo a luz da cozinha e preciso atravessar a sala escura, vou correndo, achando que alguém me persegue. Digno de registro. É um trauma provavelmente nascido depois que andei no trem-fantasma pela primeira vez. Eu morria de medo, mas era um dos meus brinquedos preferidos. Aliás, eu gostava muito de parques de diversão. Já mencionei que tive uma boa infância?

7. Nunca me perguntaram, também nunca o fizeram, mas acho que gostaria de receber flores em alguma comemoração. Talvez no aniversário. Elas são coloridas, otimistas e tranqüilas, como um lembrete de como a vida é bonita em demonstrações tão simples de afeto. Existe toda a questão do aroma também. E elas melhorariam o aspecto do meu quarto (não que ele seja feio, mas enfim). Não tenho uma flor preferida, gosto dos arranjos que combinam cores e aromas. Ah, gosto dos girassóis. São sorridentes. Aliás, eu gostaria de trabalhar um dia em floriculturas, ou em hortas, pomares. Acho que herdei do meu pai o gosto pela jardinagem, hahahahahaha.