sábado, setembro 30, 2006

Crisálidas


Ali, na solidão crua do banheiro frio, observava o absorvente encharcado daquela gota de sangue que, para ela, era enorme e atordoante; ontem era menina, hoje era mulher praticamente total. O mundo, lá fora, passeava alheio a ela, mas, no fundo, preparava-se para recebê-la por inteiro, de braços abertos, completamente metamorfoseada, ela, naquele monstro confuso e incerto; mulher adulta querendo ser muito criança. As mudanças perseguiam-na como o fantasma redivivo da procrastinação; agora era inevitável, estava presa, caminhando sozinha por trilhas incertas, que ela evitou ao máximo e agora eram sua única garantia de não cair.
Imaginou os filhos que teria, o marido que seria seu e de outras, as ligações ciumentas ao celular, as pancadarias, a violência, a dor. Chorou. Depois, viu-se idosa: imóvel numa cama de hospital ou correndo nas calçadas, exibindo ossos saudáveis? Poderia atravessar quantas crisálidas quisesse, vidas inteiras aguardavam-lhe pela frente, deliciosamente suas, ainda que misteriosas. Era maravilhoso.
Maravilhoso, não. Ainda doía. Deitada no chão do banheiro, abraçada a nada, a menina estremeceu de medo de estar viva.

sexta-feira, setembro 15, 2006

Quando eu via as crianças


Via as crianças nos parques e logo lembrava os tempos em que era menino; eu era pequeno, mais moreno que a genética, por causa do sol, gostava de correr e via tudo com inocência; o mundo era muito mais fácil.

Naquela época, as coisas todas eram deliciosamente minhas; eu estendia o braço para o alto e logo minhas vontades eram magicamente atendidas. Jogava pão velho para os patos; eles vinham até mim com aquela curiosidade sedenta de quem passa fome e encontrou comida, o pão acabava, eu levantava o braço e punha o dedo na boca, e logo havia mais pão para jogar a eles. Aí eles faziam barulho com a garganta, abriam o bico e meio que dançavam. Eu ria. Eu ria de tudo. Havia adultos prestativos, risonhos e que se completavam na minha presença. Eles se completavam comigo, e eu me completava com eles. Eles me elogiavam e faziam carinho, e eu fazia gracinha por acinte, para receber recompensas de volta; eu às vezes manipulava os adultos, e eles nem percebiam. Eu ganhava doces e chocolates, sem me importar com gorduras trans, corria atrás da bola em ruas movimentadas, sem medo de morrer, e pulava de lugares altos, mexia em bichos e segurava as facas superatraentes da cozinha, sem me importar com as perigosas conseqüências.

Hoje, as crianças não mais me observam com aquele ar cúmplice de quem quer fazer amigos. Elas me olham assustadas, põem o dedo na boca e esperam que eu diga "que criancinha linda!". Com os olhos, dissecam minha mochila, minhas roupas, meus livros, minha barba, e viram a cabeça na minha direção, quando eu respondo "boa tarde" no elevador, com uma voz grave. Vêem-me como quem vê um adulto.

Agora dirijo carros e sou responsável pela vida dos outros, retiro dinheiro em caixas automáticos, faço compras com cartão e ando sozinho nas calçadas, preocupado com a saúde. Examino o mundo silencioso, que parece segurar o fôlego, e tenho uma vontade enorme de levantar o braço, pôr o dedo na boca e segurar uma mão maior que a minha.

domingo, setembro 10, 2006

Emparedado


Cansados da tuberculose do cão, deixaram-no morrer. Quando morreu, finalmente, cansados de tudo, deixaram-no apodrecer até sobrarem os ossos; quando só os ossos branquinhos restaram, puseram-nos dentro de um saco de batatas e amarraram bem forte. Aí, deram início à reforma da casa, e os pedreiros iam de lá para cá, atarantados com tantas ordens complexas e dissonantes. O saco em que jaziam os ossos do cão reverberava um cloc cloc misterioso; eram os ossos movimentando-se, fazendo o saco andar de um lado para outro da casa. O trabalho da reforma era todo interrompido por causa daquele saco móvel, cloc cloc, cloc cloc, que derrubava os baldes de tinta e espalhava poeira pela casa. Os pedreiros, por fim, tão perturbados com aquele estorvo, resolveram emparedar o saco, de modo que as paredes da casa emitiram o cloc cloc profundo para sempre.