sexta-feira, setembro 15, 2006

Quando eu via as crianças


Via as crianças nos parques e logo lembrava os tempos em que era menino; eu era pequeno, mais moreno que a genética, por causa do sol, gostava de correr e via tudo com inocência; o mundo era muito mais fácil.

Naquela época, as coisas todas eram deliciosamente minhas; eu estendia o braço para o alto e logo minhas vontades eram magicamente atendidas. Jogava pão velho para os patos; eles vinham até mim com aquela curiosidade sedenta de quem passa fome e encontrou comida, o pão acabava, eu levantava o braço e punha o dedo na boca, e logo havia mais pão para jogar a eles. Aí eles faziam barulho com a garganta, abriam o bico e meio que dançavam. Eu ria. Eu ria de tudo. Havia adultos prestativos, risonhos e que se completavam na minha presença. Eles se completavam comigo, e eu me completava com eles. Eles me elogiavam e faziam carinho, e eu fazia gracinha por acinte, para receber recompensas de volta; eu às vezes manipulava os adultos, e eles nem percebiam. Eu ganhava doces e chocolates, sem me importar com gorduras trans, corria atrás da bola em ruas movimentadas, sem medo de morrer, e pulava de lugares altos, mexia em bichos e segurava as facas superatraentes da cozinha, sem me importar com as perigosas conseqüências.

Hoje, as crianças não mais me observam com aquele ar cúmplice de quem quer fazer amigos. Elas me olham assustadas, põem o dedo na boca e esperam que eu diga "que criancinha linda!". Com os olhos, dissecam minha mochila, minhas roupas, meus livros, minha barba, e viram a cabeça na minha direção, quando eu respondo "boa tarde" no elevador, com uma voz grave. Vêem-me como quem vê um adulto.

Agora dirijo carros e sou responsável pela vida dos outros, retiro dinheiro em caixas automáticos, faço compras com cartão e ando sozinho nas calçadas, preocupado com a saúde. Examino o mundo silencioso, que parece segurar o fôlego, e tenho uma vontade enorme de levantar o braço, pôr o dedo na boca e segurar uma mão maior que a minha.

7 comentários:

Anônimo disse...

foda foda foda

LUDMILA BARBOSA disse...

Você é muito bom, mas esse é um dos melhores textos que você escreveu que já li - talvez por ser tão verdadeiro e tão real.

I.P. Araújo disse...

Em Busca da Terra do Nunca, meu caro. Vamos ser crianças para sempre. Quem me dera. Só de vez em quando, talvez.

Sempre se superando, hein, sr. Flávio? =P Assim vc para na lua, meu caro (eita, Flávio rima com caro! *-*).

Anônimo disse...

oooh, vc eh lindo *-*
saudades!

Weronika disse...

hmmmmm
curioso
e é mesmo
I wonder se algum dia vou sentir como vc descreveu aí.
n lembro de nada quando criança e suspeito que todas as minhas lembranças-sentimentos-em relação ao mundo são puro resultado da minha fantasia, que hoje se vê criança.
:)

frassinetts disse...

o bom é não perdemos a forma "infantil" de perceber o mundo né?
caramba, quando você é criança tudo é gigante, tudo é uma festa, um pato esperando seu pedaço de pão é um acontecimento que nos fazia empolgadíisssimos!
criança, pura, ingênua, alegre.
criança, mestre da existência...!


:}


p.s.: "sem me importar com gorduras trans" foi oooteemo!

Line disse...

foda mesmo. a idéia. o texto. como vc conseguiu se expressar. se superar.

parabens. texto lindo