sábado, dezembro 30, 2006

Em 2007,


Em 2007, nada será permitido ou proibido; tudo será possível, inclusive fazer cócegas nos hipopótamos e prender lírios artificiais nos cabelos, acenar para cachorros de rua e sorrir para pessoas nas janelas. As senhoras usarão saias indianas e as crianças brincarão de pique-esconde lá dentro, tudo será colorido e esvoaçante, a grama balançando ao sabor do vento, e as roupas recenderão livremente a amaciante não testado em animais. As pessoas devolverão a inocência ao mundo e o amor não será assassinado; haverá poesia e candice em cada sorriso que mover os lábios por aí.

Brincaremos de cochichar nos ouvidos dos outros, receberemos abraços macios em troca e ficaremos abraçados por muito tempo, devolvendo ao espírito o sabor de sincera paixão.


(baseado em frase de Thiago de Mello)

domingo, dezembro 24, 2006

Noutros tempos


Então o cheiro do frango já começa a entrar nos quartos, lá da cozinha. Por mais que eu acredite que os animais vêm ao mundo com uma função a desempenhar no Universo (e não para servir aos homens), tanto quanto nós, humanos, e que humanos e animais são iguais em todos os aspectos espirituais mais básicos, e que todos juntos compõem uma cadeia de relações divinas e inexplicáveis, que se chama Natureza, as pessoas continuam a me olhar torto. Parece-me que estão ainda muito apegadas a essas coisas vãs, essas coisas vis, essas coisas chatas, queixas velhas e idéias anciãs. Neste fim de ano, esses pernis assados fazem parecer que, muito embora eu tente aprimorar o corpo sutil meu e dos outros, os animais vão continuar morrendo para servir aos viciados paladares.

Aparentemente, as escovas-de-dente por aqui têm se reproduzido intensamente. Por quanto tempo uma escova-filhote deixa-se encubar na escova-mãe, até que venha latejando a vontade libertadora de sair do casulo quente? Por outro lado, os sabonetes passam por intenso regime celibatário e não se preocupam em gerar descendências. Mais um sabonete verde-claro, com cheiro de "frescor da manhã" (?), e a gaveta ficará vazia, entregue às... às? Talvez às baratas, que, desde Hiroshima, vivem resistindo aos ataques nucleares, mudando de forma e corpo, mas sempre elas mesmas. Tão fortes, essas meninas cascudas. De todo modo, não pode haver banheiro com muitas escovas e sabonetes nenhuns. O sistema entrará em colapso. Céus. Tchau, banheiro.

Eu desejo, àqueles caríssimos que me leram, um 2007 repleto de banheiros equilibrados, ceias sem cadáver e muito amor com beijos, daqueles que fazem a gente querer mais e catapultam a consciência lááá pro céu, como noutros tempos. Tomara que as coisas sejam mais leves e transitem livremente por aí, com todas as cores bonitas e iguais para todo mundo.

terça-feira, dezembro 19, 2006

Para sempre era o perdão que havia. Eu morria e você continuava a viver. Levava-me a passear, eram campos de cinzas e pó, farelos de lágrimas, dor e dó; a esperança brilhava breve e me sorria, aí fugia, corria, para perto de alguém... não eu. Debaixo do sol provocante, reluziam os toldos verdes em prol do cessar dos corações. Aí tudo cessava, menos eu, que latejava escondido, embrionado, esperando por renascer.

domingo, dezembro 03, 2006


Em sonho, perguntaram-me o que era amor, e eu disse que, depois de indefinível, era como um chiclete azedo que se morde e deixa escorrer o recheio ácido, que vem percorrendo o corpo e queimando tudo. Quase paralisa a língua, e enxagua os olhos. Depois de todos os suores e as dores, e os tremores fenomenais, que ocorrem quando uma molécula "diz sim a outra molécula", emergem essas sensações alucinógenas que distorcem tudo e fazem aparecer uma sombra de ciúme na paisagem que era linda.

Isto ocorre quando uma molécula diz não a outra molécula, e é a parte que destrói as outras.

domingo, novembro 26, 2006

Maravilhoso pássaro


Cá dentro, a chaga azul, fria, cresce quente e dolorida, como um sorriso que se descobre fascinantemente, mas desaba num choro sentido logo depois. Lendo as mensagens que nunca recebo, metralhado pelas incertezas muito presentes, tão minhas, percebo a dor do amor que se esvai, maravilhoso pássaro do coração.

sexta-feira, novembro 17, 2006

Mudou.


Acho que o poema mudou.







Há o olhar teu.
Este que já não é meu.
De tanto doer, o eu...
Querer catapultar.
Catapultar, e não voltar.
Lançar e arremessar.
Sair do meu lar.
Que precisara de tais teus olhares
para não esfarelar.
(amei, entendeu?)
Mesmo se sob quebrados telhados eu viesse a morar.

domingo, novembro 05, 2006

Achados e perdidos


É o achados-e-perdidos da minha vida.
Sentado na cozinha, mãos entre as pernas, pernas cruzadas, o relógio preenchendo o silêncio, o desconforto de estar no mundo, a cabeça doendo, eu espero.
Eu espero a pizza assar.
Eu espero você terminar seus desenhos.
Eu espero a lua sumir da janela. Já sumiu.
Eu espero as novidades chegarem.
Eu espero o barulho das chaves.
Eu espero a presença amiga.
Eu quero um ombro.
Para pegar minhas dores incômodas, amarrá-las numa linha e sair correndo com elas, como quem alça pipas e ergue bandeiras, até que elas voem sozinhas, para além de toda a estratosfera. Fiquem lá e não voltem.

sábado, outubro 28, 2006

Les cigales

As cigarras passam sete anos internadas sob a terra, matutando a si mesmas, e depois eclodem para a vida numa visita rápida ao mundo, onde berram,
berram,
berram,
berram,
porque é a única e a última coisa que farão. Depois, elas morrem. Deixam as cascas.

Eu passarei sabe-se lá quanto tempo internado em mim mesmo antes de sair para o mundo, onde me recobrirá uma vontade grande de amar,
amar,
amar,
amar,
que no fim será minha única tarefa, e eu morrerei sorrindo, os pregos enterrando, ainda a perguntar, internamente, se amei correto. Deixarei as cascas.

terça-feira, outubro 10, 2006

Nestas paredes em que nada há...


Essas paredes rosas-quase-brancas bem que poderiam ser mais fortes e genuínas, marrons ou verdes, ou azuis, ou pretas. Seria bom que eu tivesse paredes marrons - não várias, uma já bastava. Eu chegaria muito cansado dos vários lugares e escreveria nelas com uma tinta mágica que ficaria lá para sempre, ou até o tempo que eu quisesse. Escreveria histórias de amor que nunca aconteceram, e melhor mesmo que nunca tenham acontecido, falaria das inquietações do mundo, das coisas mal feitas e daquelas que nunca foram feitas, porque somos perfeitos demais para nos deleitarmos com essas coisas vãs. Seriam histórias incompletas, engolidas pela quina da parede, ali onde o gesso observa a vida; seriam lágrimas e sorrisos aos montes. Eu poderia exercer minha criatividade e seria livre por me desafogar; existiria para sempre nas paredes, e poderia eternizar minhas palavras de sentimentos, que seriam ouvidas e reconfortadas, trocadas, reinterpretadas, comentadas. Seriam livres por aí, o que ainda não são.

segunda-feira, outubro 09, 2006

Mari naná



A Marina tavassentada ao meu lado, com a blusa-da-pegação (i love tom, i love ted, i love john, i love jed, i love standby), e a barriga dela tava todadesprotegida. Nós estávamos agonizados, dentro da salaquentedetecom, o professor não passava o filmenunca. Por dentro, Marina remexia em suasinquietações. "Ah, tenhoquecaber novestido". "Ah, ossorvete com o Flávio vai darerrado". Eu ouvi esse último pensamento da Marinalá, e disse para ela aqui que não, ia dar tudo certo, nada haveríade estragar o nossossorvete, porque eles sempre dãocerto. Saem sussurrando poraí (os sorvetes). Foi então que, do jeito que o Diabogosta, eu enfiei o lápis na barriga da Marina, ela murchou toda e sumiu, acabei com a Marinamá.

Acho que o sorvete não vai dar certo.

sábado, setembro 30, 2006

Crisálidas


Ali, na solidão crua do banheiro frio, observava o absorvente encharcado daquela gota de sangue que, para ela, era enorme e atordoante; ontem era menina, hoje era mulher praticamente total. O mundo, lá fora, passeava alheio a ela, mas, no fundo, preparava-se para recebê-la por inteiro, de braços abertos, completamente metamorfoseada, ela, naquele monstro confuso e incerto; mulher adulta querendo ser muito criança. As mudanças perseguiam-na como o fantasma redivivo da procrastinação; agora era inevitável, estava presa, caminhando sozinha por trilhas incertas, que ela evitou ao máximo e agora eram sua única garantia de não cair.
Imaginou os filhos que teria, o marido que seria seu e de outras, as ligações ciumentas ao celular, as pancadarias, a violência, a dor. Chorou. Depois, viu-se idosa: imóvel numa cama de hospital ou correndo nas calçadas, exibindo ossos saudáveis? Poderia atravessar quantas crisálidas quisesse, vidas inteiras aguardavam-lhe pela frente, deliciosamente suas, ainda que misteriosas. Era maravilhoso.
Maravilhoso, não. Ainda doía. Deitada no chão do banheiro, abraçada a nada, a menina estremeceu de medo de estar viva.

sexta-feira, setembro 15, 2006

Quando eu via as crianças


Via as crianças nos parques e logo lembrava os tempos em que era menino; eu era pequeno, mais moreno que a genética, por causa do sol, gostava de correr e via tudo com inocência; o mundo era muito mais fácil.

Naquela época, as coisas todas eram deliciosamente minhas; eu estendia o braço para o alto e logo minhas vontades eram magicamente atendidas. Jogava pão velho para os patos; eles vinham até mim com aquela curiosidade sedenta de quem passa fome e encontrou comida, o pão acabava, eu levantava o braço e punha o dedo na boca, e logo havia mais pão para jogar a eles. Aí eles faziam barulho com a garganta, abriam o bico e meio que dançavam. Eu ria. Eu ria de tudo. Havia adultos prestativos, risonhos e que se completavam na minha presença. Eles se completavam comigo, e eu me completava com eles. Eles me elogiavam e faziam carinho, e eu fazia gracinha por acinte, para receber recompensas de volta; eu às vezes manipulava os adultos, e eles nem percebiam. Eu ganhava doces e chocolates, sem me importar com gorduras trans, corria atrás da bola em ruas movimentadas, sem medo de morrer, e pulava de lugares altos, mexia em bichos e segurava as facas superatraentes da cozinha, sem me importar com as perigosas conseqüências.

Hoje, as crianças não mais me observam com aquele ar cúmplice de quem quer fazer amigos. Elas me olham assustadas, põem o dedo na boca e esperam que eu diga "que criancinha linda!". Com os olhos, dissecam minha mochila, minhas roupas, meus livros, minha barba, e viram a cabeça na minha direção, quando eu respondo "boa tarde" no elevador, com uma voz grave. Vêem-me como quem vê um adulto.

Agora dirijo carros e sou responsável pela vida dos outros, retiro dinheiro em caixas automáticos, faço compras com cartão e ando sozinho nas calçadas, preocupado com a saúde. Examino o mundo silencioso, que parece segurar o fôlego, e tenho uma vontade enorme de levantar o braço, pôr o dedo na boca e segurar uma mão maior que a minha.

domingo, setembro 10, 2006

Emparedado


Cansados da tuberculose do cão, deixaram-no morrer. Quando morreu, finalmente, cansados de tudo, deixaram-no apodrecer até sobrarem os ossos; quando só os ossos branquinhos restaram, puseram-nos dentro de um saco de batatas e amarraram bem forte. Aí, deram início à reforma da casa, e os pedreiros iam de lá para cá, atarantados com tantas ordens complexas e dissonantes. O saco em que jaziam os ossos do cão reverberava um cloc cloc misterioso; eram os ossos movimentando-se, fazendo o saco andar de um lado para outro da casa. O trabalho da reforma era todo interrompido por causa daquele saco móvel, cloc cloc, cloc cloc, que derrubava os baldes de tinta e espalhava poeira pela casa. Os pedreiros, por fim, tão perturbados com aquele estorvo, resolveram emparedar o saco, de modo que as paredes da casa emitiram o cloc cloc profundo para sempre.

quarta-feira, agosto 23, 2006

Janela de casa, borda do mundo

Gosto de lavar os tênis, apesar da dor nas costas. Depois eles ficam muito comportados ao sol e ao sabor do vento seco, à janela do meu apartamento, a borda do mundo, vendo todo o movimento, as crianças subindo pelos rodapés de seus quartos e gostando de ficar bem escondidas sob as saias das mães, os cachorros se divertindo às custas da burrice dos donos, os pássaros nascendo, e eles ficam quietinhos, embevecidos com o privilégio da paisagem, porque sempre viram tudo ao nível do chão, e ficam sujos de terra. A vida na rua os fascina, é um deleite assim, vista do alto.

La beauté est dans la rue.

terça-feira, agosto 01, 2006


"Anyway, my point is that it's really hard for people to live their lives alone" (Murakami, 2005).

Os contornos que distinguem você de mim vão em breve diluir-se em sentimento de leveza etérea, se eu disser o que acho de você, porque parei em você nesta corrida pelo complementar-me. O amor cresce como um câncer neste coração pesado e sangrento, esta ferida escancarada, obscena, em vias de putrefação, como aguardando a comunhão inevitável com a dor excruciante. É que embora diferentes, somos muito iguais, e disseram-me que amar no outro o reflexo de si mesmo é um erro condenável, egoísmo; meu umbigo não é o centro do mundo, antes fosse. Ainda assim, gosto de sentir os ecos de sua densidade silenciosa, como um perfume que sai voando pelo ar e me gruda no pescoço; do amor nasce a descoberta. Resta-me deitar, e deitar apenas, olhar para o céu que gira e chamar alguém de meu-amor, desmaiar de atordoamento quando me avisarem que não preciso de você para me sentir inteiro. Alguma coisa rasgou-me e costurou-me tão ao mesmo tempo que eu mal percebi. Minha vontade mesmo é de forma muito cândida arremessar você para o dentro devastado de mim, incorporar o que não é meu, para redefinir o que é; mais amor e menos sexo. Nesta ânsia de cheirar, sentir e mastigar as pessoas, para preencher em mim o que há de mais vago com o que nelas há de mais abundante, regurgito o que me disseram ser a minha vida, e vou atrás da sua, para você e eu vivermos juntos, por um momento breve e curativo.

sábado, julho 22, 2006


Tenho vontade de escrever para o mundo um texto denso e tocante, para abrir a ferida purulenta e quase-matar vocês, para acabar com o recato que me reduz perante a vida e gritar a minha dor. É que tenho uma relação visceral com as palavras, elas me sussurram e eu berro para elas, eu choro textos e gargalho poemas sóbrios, ébrios, cinzas e brilhosos; tudo transcende a existência e se despede da vida. Mas, aí, eu serei incapaz de dar-lhes o soco certeiro, ou de espremer-lhes o coração até a gota final; querer atingir é muito fácil, atingir mesmo, ah... Recebam as lágrimas de fel e rasguem todo recato, mergulhem nas impurezas e voltem bem limpos, bem sãos, mas ainda capazes de puxar o gatilho, para arremessar as balas de fogo àqueles que se deixam sumir.

Meu medo é morrer de repente, como se abortado do mundo, ainda sentindo, sentindo muito.

sexta-feira, junho 30, 2006

Lá dentro, a dor lancinante e as mãos cruzadas, e a vontade excruciante de se completar num abraço de alguém.

terça-feira, junho 06, 2006


Foi um choque longo, árduo e muito doloroso, porque a notícia me foi dada de tal maneira abrupta que eu mal me suportei. Em mim, o são e o malsão duelaram até a morte para saber quem seria o primeiro a ouvir a notícia tétrica, vinda do outro lado da linha, anunciada pela voz do sopro da vida. Alô?

O alô foi um choque. Alô, gostaria de falar comigo mesmo, o meu mundo está?, encontra-se, por um acaso?, foi, de algum modo, parar aí?, sabe se alguém o viu recentemente?, por favor, é urgente, eu preciso do meu mundo, e eu o perdi. Responderam-me que meu mundo e a vida puseram-se num carro luxuosíssimo, ele no banco do passageiro e ela ao lado, ao volante; os dois dirigiram loucamente por uma avenida esburacada, cercada de árvores e ouro, capotaram e morreram. Ao término da notícia ("ora, você não sabia?, capotaram e morreram"), estava alagado de suor, lágrimas e de mim. Não é assim que se dá uma notícia dessas.

Agora será um longo caminho para me encontrar novamente, e outro maior para reconstruir outro mundo meu.

quarta-feira, maio 24, 2006

Cenas domésticas


A mãe berra o anúncio de que o jantar está à mesa; ninguém sai correndo, e as moscas e o ar frio acabam por tomar conta da comida, tornando-a podre e semelhante a um cadáver antes que o filho sequer toque o metal frio da colher fossilizada; a mãe gritará novamente até as pregas vocais lhe explodirem, o filho sairá correndo, a raiva irá dominá-lo e o prato cheio da comida fétida será atirado sem dó às paredes.

Divirtam-se, paredes, comam da comida que era minha, vocês estão tão pálidas de fome, depois divirtam-se com os estilhaços do prato; a comida escorreu, escorreu, depositando-se por fim no piso frio, adubando o granito cinza e tão mórbido, fazendo emergir do assoalho uma árvore feia, marrom, pelada e torta, cheia de uma beleza por descobrir que, no caos da cotidiana vida doméstica, não seria descoberta; a beleza da árvore estava no contraste de sua cor com a cor das paredes, mas olhavam-se apenas a árvore e as paredes em separado, nunca juntas, e nunca se percebeu o encanto do contraste oriundo da catástrofe doméstica.

O filho pegou a maçã na cozinha e a mordeu. As maçãs mudaram o mundo. Eva mordeu a maçã e a humanidade nunca mais foi a mesma. A maçã caiu na cabeça de Newton, idem.

segunda-feira, maio 08, 2006

Dentadura


Dentro do prédio, os alunos deitam-se e a professora apaga as luzes. A professora tem labirintite e medos de várias coisas, entre os quais de escuro e de pisar nos alunos deitados, de modo que eles, os alunos, vêem o vulto torto da professora escorrendo pela parede até encontrar um lugar seguro onde sentar.

Fora do prédio, na própria rua onde o mundo acontece e acontecem as coisas do mundo, um velho entra no ônibus lotado e senta-se. Ele também tem medos de várias coisas, entre os quais perder a dentadura; é o que vai lhe acontecer em breve, mas ele ainda não sabe. Uma moça cheia de casacos e plumas e roupas que se mexem senta-se ao lado dele. O velho não resiste e espirra, a dentadura cai aos pés da moça. A moça grita, mas estão todos paralisados em decorrência da lotação do ônibus, e ninguém olha. O velho pega a dentadura, que sorri. A dentadura só sorri, e só para a moça, inclusive. Quando a moça, cheia de horror e asco aos dentes do velho, vira o rosto para o lado, o velho tenta recolocar a dentadura, mas a moça desvira-se em seguida, e o velho desiste.

Os dois ficarão nessa dança louca de olhares e tentativas e constrangimentos e vergonhas e ascos inúteis até que a professora levante-se novamente para acender as luzes do prédio.

sexta-feira, abril 28, 2006

No chão do meu banheiro

No chão do meu banheiro aconteceu cena das mais dramáticas. Na borda do tapete já encardido, perdidas na imensidão lisa do azulejo frio, duas formigas esbarravam perigosamente na linha que separa a vida da morte. Ou melhor, uma já estava morta. A outra é que não sabia o que fazer com o cadáver que a perturbava; pobrezinha, percorria o azulejo inteiro numa velocidade que eu nunca vi em formigas, desesperada, e pegava o corpo morto da outra, trazia mais para perto do outro azulejo, depois voltava, e ia de novo. Talvez chamasse por mais outras, mas ninguém veio. Devia estar roída por dentro, toda envolta na dor da perda.

Tão humanas, as formigas. E nós, tão elas.

sábado, abril 22, 2006

Os dias


Há as noites, as tardes, e há os dias. Dias em que se procura apenas o conforto repousante nas paredes frias. Dias em que há ninguém para você, apenas você, o piso e o céu, mas eles não são o apoio que você procura, porque estão longe demais, e você está pequeno. É tudo escuro e bem difícil, um bicho vivo, frio e escorregadio. Com tentáculos que têm ventosas. E há as estrelas, ah, as estrelas, tão pouco coesas quanto as gracinhas da minha mãe, "Que foi?, um mosquito que engoliu um boi?", que me matavam de rir quando eu era criança. É tudo tão bom e inocente na infância. Mas não agora, porque há as noites, as tardes e os dias.

E há as pessoas, que aparecem com um sorriso bom, e salvam os dias.

quarta-feira, abril 12, 2006

Baratinha quando morre se arrasta pelo chão...



Era praticamente uma ET. Estava quase morta. Já estava pseudomorta, arrastando-se sem vida, a ET, a barata. Suas patas tortas e trôpegas embaralhavam-se na ânsia absurda por um pouco da vida que lhe estava sendo negada, percorrendo o chão que seria seu túmulo. Ela, a barata, era o que era e o que não era, era barata e aranha, pelos 8.000 pés que se lhe formavam, era barata e lagartixa, quando subiu pela parede de azuis azulejos. Perseguiu-me, a barata, e fugiu de mim. À hora oficial de sua morte, já eu não estava mais lá.

Quando vejo baratas, dá-me uma vontade bruta de ler Clarice Lispector*.

*por causa de A Paixão Segundo GH etc.

terça-feira, março 28, 2006

Cansei


Querem saber?, eu cansei. Cansei dos cabelos que caem, das alergias que me acometem, do dermatologista que nunca tem horário disponível, cansei do torcicolo que vai sumindo lentamente, para testar minha paciência; cansei das músicas, de ouvi-las e aprendê-las, cansei das andanças, cansei da internet, cansei do restaurante que me mata de raiva, cansei do sol e do calor, cansei das televisões e dos computadores, que separam as famílias, que separam a minha família, cansei de conversar com meus pais só para pedir dinheiro, cansei de dar despesa e de ser a despesa... cansei de mim.

Ah, gente, eu cansei...

sábado, março 18, 2006

À espera


Escola de música, eu, sentado, lendo, esperando a aula de percepção musical. Ao meu lado, a menina e seu violão - um violão muito maior que ela. Em breve, a menina estaria chorando. Chorando mesmo.

É que a única companhia da menina desde o término de sua aula até aquele momento era seu silencioso violão. Ela e o violão, durante mais de uma hora, esperando os pais que chegavam nunca. Enquanto ela bagunçava o rosto com lágrimas vermelhas de solidão, acabava também por me bagunçar; eu, que passara pela mesma situação tantas e tantas vezes.

E eu ali, segurando a vontade de chorar de dó, resgatando as piores cenas da minha infância, quando surge essa mulher rude no falar e benévola no agir, que enfim toma o passo decisivo rumo ao alívio da menina e pergunta se ela está - óbvio que estou, moça - esperando os pais.

Foram telefonemas e mais telefonemas. A mãe da menina sumiu, o pai também. Fui para a aula de percepção e a garota estava lá, ainda, na porta da escola, com os braços cruzados por cima do violão. Depois, ela sumiu.

Por um momento, o mundo era a menina esperando os pais.

quarta-feira, março 15, 2006

Terrores de infância


Disseram-me para sonhar com Harry Potter. Não sonhei com Harry Potter. Nem com lugares bonitos. Nem com quadras de esporte. Sonhei com os terrores da minha infância (eu sou da época em que o trem-fantasma do Nicolândia me assustava, e o Fantástico e o Globo Repórter ainda davam medo).
E tinha aquele tal de Plantão Globo também, que, graças a Deus, nunca mais apareceu. Ele interrompia seus programas preferidos com uma música macabra e uma apresentação que causava ataques epilépticos a quem estivesse até uns 200 metros de distância da televisão, e aí aparecia uma mulher-mortícia que anunciava a morte de alguém. Era como estar vendo algum daqueles horrorosos programas da Xuxa, e ser interrompido pela música cemiterial do Plantão Globo, e ficar sabendo que Xuxa estava morta.
É por isso que, hoje, eu não vejo mais TV. Trauma de infância.

sexta-feira, março 03, 2006


Aí você ouve música bem alto, até os tímpanos escorrerem, e alguém chega e lhe faz uma pergunta muda, porque só o que você vê são os lábios dela se mexendo; naturalmente, você não entende e grita "QUÊ?", mas sem querer, na verdade não era sua intenção gritar com a pobre da pessoa, e ela repete a pergunta, ou o comentário, enfim, e você ainda não entende, mas finge que compreendeu absolutamente, e diz que "nossa, é mesmo?"; a pessoa faz uma cara de O.o, ela está atordoada, coitada, porque você, elementar, não respondeu à pergunta dela, ela vai embora e você ri por dentro, triunfante, quase sádico.

segunda-feira, fevereiro 27, 2006

Ponte com brigadeiro em cima


O papel em branco, a caneta ali dando sopa, aí eu faço essa parte de baixo, que deveria ser uma ponte, e acho que ficou com a maior cara de fôrma* de brigadeiro. Aí desenho o sol por cima, ponte com sol em cima, e decido pôr olhos e raios gordos. Pronto: girassol.

Ponte-sol-brigadeiro-girassol.

*ainda tem acento, conforme dicionário; ainda bem, porque pra mim, quando eu lia textos em que fôrma vinha sem o circunflexo, era tão inaceitável que o tivessem tirado na reforma ortográfica.

domingo, fevereiro 26, 2006

Dia errado


O dia nem começou e já está cheio de erros. Por exemplo, eu acordei às 7:50, achando que eram 9 da manhã, porque estava um calor enorme. Tomei várias canecas cheias de café, olhei pra janela e tinha uma nuvem enorme lá fora, e já ventava frio. Minha mãe dormiu até as 11h, o que nunca - eu disse nunca - acontece. E, claro, ninguém atende lá no Nippon. Será que abrem hoje?

Ih, droga, vai chover. Tá tudo errado.

P.S.: o curso da adeuslenin não me tem feito muito bem, digito o "R" com o dedo errado e perdi velocidade. É bom que eu pratique no carnaval.

Na foto, minha tatuagem. De batata frita.

segunda-feira, fevereiro 20, 2006

Adeus, Lênin!


Começaram hoje as aulas de digitação. Porque digitar direito é necessário. Oito horas da manhã? Sim, até as doze. "Vocês são alunos de adeuslenin?"

Adeuslenin é o nome da nossa professora, e o curso é num lugar bem simpático, com árvores, cantinas que fazem tapioca, pardais gordos e centro espírita. Todos os alunos são mulheres, menos eu e Henrique. Meninas que fumam, senhoras que quebram o farol do carro e mulheres que morrem de rir com o espirro dos outros (e eu acabo morrendo de rir junto). E adeuslenin, claro. Esta, indispensável.

E eu não vou parar de ver Lost, mesmo que tenha de dormir no meio do curso, digitando asdfg asdfg asdfg gfdsa gfdsa.

E é melhor eu sair daqui, porque fico a tentar digitar certo, e logo tenho agonia, porque não consigo.

Pato Fu: "quanto maior a simplicidade, melhor o nascer do sol"
E eu chorando, chorando. É que essa música abriu um furo em mim e de lá saiu todo o amargor podre; eu nunca achei que Pato Fu fosse me tocar tanto.

domingo, fevereiro 19, 2006

Açaí com dinheiro


Aquele lugar é mesmo um tanto quanto detestável. Homens musculosos e endinheirados (um termo óbvio por lá) saem de suas motos com luzes de neon e refestelam-se no conforto garantido de suas gramas atapetadas, enquanto mulheres uniformizadas fazem o mesmo, gritando com agudez. Um pouco antes de o Victor cair no lago, adolescentes de biquíni e calças pseudozens, provavelmente sem calcinha, passeiam pela calçada, chamando atenção (a ordem por lá). Mais à frente, encontram homens que comentam acerca de suas carnes.
Aí, o Victor cai no lago.
Elas voltam em seguida, rebolando bastante, felizes. E mesmo que o Victor tenha feito um estardalhaço ainda que discreto, a família de dois iates não se importou, o cachorro sozinho e a mulher com um biquíni de lona socado misteriosamente lá dentro do... lá dentro.
Dinheiro pra quê, não é mesmo?

quarta-feira, fevereiro 15, 2006

Os polvos de ferro da academia

Academias são ambientes pouco confortáveis para nerds inexperientes como eu, que, como eu, não sabem mexer nos computadores de lá, não sabem regular as máquinas de lá, não sabem encontrar as máquinas de lá, não sabem ligar as bicicletas de lá e cambaleiam tontos até o bebedouro, de onde jorra o líquido vital, que escorre pelo chão inteiro, porque eu estou exausto demais pra acertar a água de primeira.
Igualmente desconfortável é um tal de cross-não-sei-o-quê; eu ainda mato o cafajeste que teve a coragem de inventar aquela máquina sacripanta, que até nossos pensamentos mais recônditos conhece. Dez minutos naquilo lá, puxando alavancas e subindo degraus, foi demais pra mim. Aliás, o objetivo era só puxar as alavancas, as pernas moviam-se sozinhas; as pessoas ao meu lado faziam com tanta classe e elegância que eu definitivamente estava fazendo tudo errado, porque o meu reflexo no vidro estava desengonçado demais, quase dançando. E ela ainda avisou, no visor: "acalme-se". Ah, vá passear.
Eu saí de lá cambaleante, com a parte acima da cintura doendo, e a parte abaixo da cintura praticamente adormecida. Mas o dia estava bonito, e isso foi a minha recompensa.
\o/
(caderno cultura atualizado)
Na foto, meus dedões se abraçam e se consolam, cada um com a vitalidade adormecida de suas vivências amargas.

sábado, fevereiro 11, 2006

Amor, horrível amor


Apaixonado por alguém que não conheço, eu, ultimamente, tenho sentido um amor que sai aleatório do ar e me fisga sem que eu perceba, que aplica um colorido intenso ao meu mundo sépia - sépia, porém não amargo, embora amargo seja eu, cadáver amargo que se beija.

Antes que o abismo que me habita transborde excessivamente, vem o amor, fluindo pelo ar, e me percorre, cruel; dá-me um vigor intenso, imenso, que me abraça as costas de modo tal que mal agüento ser humano.

Eu amo você, eu preciso de você, seja você quem for.

(eu estou bem; é que tenho lido muito Clarice)

sexta-feira, fevereiro 10, 2006

Mais outra tentativa


Este, meu Deus, já é o bilionésimo blog que eu crio; espero que ele não venha com palhaçadas pra cima de mim, porque perder o multiply foi como espremer meu coração e deixar o sangue cair num abismo dentro de mim.

Tantas coisas a dizer, enfim. A UnB é como uma cidade parelela, um universo acadêmico inteiro apenas esperando que os alunos o descubram. A universidade é dona de um arsenal de imagens poderosas que vão fomentar o meu imaginário, como professoras com saia zé e pássaros muito, muito gordos, como o da foto.
No mais, life goes on. E sair de uma esteira que o agarrou por 10 minutos é quase viciante, porque, de repente, assim que você põe o pé pra fora, o chão se move sob seus pés, e não eles sobre o chão. Achei que a academia ia ser puxada em minha direção, como se em cima de um tapete que eu, uma criança birrenta, agarrasse, gritando "meu!".
Nota: o título deriva de uma cena da mesa da sala. Perfeitamente aleatória, deliciosamente dadaísta.