quarta-feira, janeiro 24, 2007

Cappuccino


Cappuccino gelado dava-lhe gases de todo modo, mas ela continuava tomando mesmo assim, dane-se; embora não entendesse aquele hábito bizarro que a humanidade adquirira de beber leite dos outros (deixava o estômago todo pesado e moribundo, como era possível?), continuava não resistindo ao sabor mágico de um bom cappuccino cremoso, numa xícara assim num lugar assado; beber era um processo extra-estomacal, passava também pela percepção visual dos momentos.

A moça da cafeteria, que ficava no caixa, porque a outra que servia os clientes era horrorosa, andava rebolando as cadeiras e tinha o cabelo sempre preso pela mesma presilha de plástico. Ela poderia ser muito bonita, mas não era. Talvez se mudasse o penteado... enfim. Aquela era sua vida agora, precisava acostumar-se. Não tinha casa, nem família, estava expulsa de casa, excomungada, ex-virgem, ex-everything, teve vontade de esmurrar a garçonete, não havia chocolate suficiente no cappuccino, enfim. O telefone tocou e ela atendeu.

Alô? Sei. É, é... Sério, quando? Fala mais alto, não estou ouvindo. Aham... é, tô aqui, né... fazer o quê? É, eles viram. Ah, não sei, não quero pensar nisso agora. Não, não quero conversar. Não, Camila, não, por favor. Pelo amor de Deus. Não, escuta. Não. Sim. Eu não quero que você venha pra cá! Quero ficar só. Desculpa. Aham... tá. Tá, venha. Vou esperar lá fora.

A garçonete veio atrás, enquanto ela saía da loja, para dizer que não pagara a conta, mas ela dirigiu-se à garçonete munindo-se de gestos obscenos* e saiu do mesmo jeito. Lá fora, defronte das placas das lojas, que brilhavam em neon, viu que a da cafeteria era realmente bonita. Aí, teve uma idéia.

Teve uma idéia e correu para a vida nova que a aguardava. Camila que pagasse a conta.**


*certo, "dando dedo" seria mais fácil.
**final horrível, galera, foi mal.

segunda-feira, janeiro 15, 2007

O triste fim de...


(paisagens não sorriem, mas aquela lhe sorriu. ele retribuiu com o sorriso moribundo que lhe restava, e podia ficar para sempre ali, vendo, porque era bonito e melhor que amar)

O dia seguinte era um outro dia, ele estava cansado de andar e resolveu sentar apenas. Sentou e observou.

O que havia além daquelas duas lentes que eram seus olhos úmidos e pesados era um conjunto de símbolos a deduzir e desvendar. Munido do suspiro forte de ódio e ardor, sua última arma desde então, olhava para os outros sem querer que eles o olhassem. Vontade atendida: ninguém o viu morrer sozinho, ali mesmo, no meio do mundo inteiro, meu Deus; absolutamente ninguém viu. Estavam ocupados demais em lavar com água ensaboada os carros, as varandas, os cachorros e as mulheres. Dizem que, ao morrer, uma pessoa comum vê uma luz branca, redonda e apaziguadora rodando, rodando. Ele não era uma pessoa comum, e o que viu (além daquelas duas lentes que eram seus olhos úmidos e pesados, e agora tristes) era um verdadeiro turbilhão de luz branca, gigante, convulso, irrequieto, MEU DEUS!, era a pior coisa do mundo. Ele vai morrer em breve, sentado mesmo, mas ninguém sabe disso, então, psst!, segredo só nosso. O furacão de luz branca mostrou-lhe as coisas erradas que fizera em vida, e foram todas. Mostrou-lhe as coisas certas que poderia ter feito ao invés, e eram fáceis. Mostrou-lhe que poderia ter mudado o mundo, vencido as barreiras, chegado em primeiro, quebrado paradigmas, mostrou-lhe que era um super-herói que morreu sentado.

Ele morreu sentado, ali mesmo, na frente dos olhos dos outros, e ninguém sabe por quê, porque ninguém viu.