terça-feira, janeiro 20, 2009

Retratos pitorescos

Chego cedo, estaciono mal entre dois carros mal estacionados, um Honda Fit e um C3 da Citröen. Todo dia é a mesma coisa, uma ginástica no volante para acertar o carro na vaga, enquanto mil e um carros vão se alinhando atrás de mim, e no final todos os carros ficam mal estacionados. Alguns motoristas estacionam TÃO mal que dá vontade de riscar os carros deles inteirinhos! Mas isso não convém no momento. O fato é que do meu lado direito existe um rosto, um rosto dentro do carro. Uma cabeça angulosa emoldurada por um cabelo liso e preto, escorrido. A pele do rosto é morena, e provavelmente a do resto do corpo também (é claro). É uma mulher, uma moça. Enquanto ajeito o carro na vaga, desistindo logo no começo, porque não adianta mesmo, a moça rói as unhas, ansiosa. Já fumou vários cigarros, ali dentro mesmo. Deve estar esperando o começo das aulas. E todo dia é a mesma coisa, tanto quanto os carros tortos no estacionamento. Ela senta no mesmo lugar, cruza as pernas do mesmo jeito, e os olhos das outras pessoas fazem assim: começam pelo topo de sua cabeça, admiram seu cabelo preto e escorrido, depois se chateiam com seu rosto sempre mal-humorado, chato e impaciente, depois descem pelo corpo bem vestido, alinhado, elegante, asseado, com braços tatuados, os dois braços são tatuados, depois voltam às orelhas quando percebem que ali existe um alargador roxo, depois descem de novo até os pés, sempre cobertos por um sapatinho de plástico. De plástico porque ela é vegana, como faz questão de comentar em algumas aulas. Veganos não se vestem com pele de animais, nem frequentam açougues (em francês, a palavra boucherie significa açougue, e também carnificina). Mas ela está sempre descontente, impaciente, vidrada no relógio como se o tempo passasse lentamente, mais devagar que em Oslo. O tempo corre superdevagar em Oslo, ou melhor, não corre, rasteja. Então, o tempo para essa moça rasteja. E quando ela fala, é como se ela jogasse todas as suas ansiedades para fora, suas palavras são loucas, arremessadas, rápidas, hesitantes, trepidantes porque tropeçam de sua boca para o ar. Seu francês tem um sotaque rascante e quase dinamarquês, ou melhor, é totalmente Dinamarca, e ela fala de veganismo, freeganismo, especismo e a derrocada das gerações anteriores. E quando a vemos dentro do carro enquanto ajeitamos o nosso próprio carro na vaga, ela, roendo as unhas, desliza o olhar para o lado, sorrateira, tentando enxergar, mas ela não sabe que nós a estamos vendo, não sabe que a estamos comparando a um índio xavante. E quando giramos o volante no sentido contrário para alinhar o carro, ela volta os olhos para frente, e ali tritura todas as suas ansiedades.

Um comentário:

Unknown disse...

Coitada, aposto que ela nem é assim. Aposto que nós dois seríamos melhores amigos :)