sábado, março 21, 2009

Sobre o catalão e o caboverdiano

Minha história com o caboverdiano é curiosa e me inquieta desde que passei a escutar Mayra Andrade. Mayra foi catapultada para a nata dos circuitos musicais depois que saiu de Cabo Verde, sua terra natal, um arquipélago da porção setentrional da África, para cantar sobre chuvas de rabada e murros no tatame em bares cult e renomados de Paris. Mas Mayra não é o cerne de nossas preocupações.

Do mesmo modo que o latim degenerou em várias línguas que foram se transformando, o caboverdiano, a língua do povo de Cabo Verde, tem uma formação muito curiosa. O latim, por exemplo, deu origem às línguas formalmente conhecidas como latinas, o português, o espanhol, o francês, o italiano, e uma outra porção de idiomas menos praticados, como o romeno. Quem fala romeno hoje em dia? Ninguém. Ao contrário do caboverdiano, que é falado por muita gente por aí, e você nem imagina. E como a língua é viva, o espanhol também degenerou-se, por exemplo. O catalão é falado com profusão no sudeste da Espanha e custa a infiltrar o resto do país. Em Barcelona, por exemplo, ao analisar alguma obra de Gaudí, é preferível, para ser entendido, proferir um comentário em catalão, não em espanhol. Catalão é uma língua curiosa. Ao contrário de castelhano, que se diz castellano, ou español, porque o castelhano afinal de contas é a língua oficial da Espanha, catalão diz-se català. Confuso, não?

O caboverdiano é mais, e sua história permite entender a curiosa história desse arquipélago africano. Cabo Verde foi colônia portuguesa, e como tal tem como idioma oficial a língua dos patrícios. O português é utilizado nas cerimônias oficiais, nas assembleias legislativas, na imprensa e em outras publicações, como as embalagens de papel higiênico do presidente. No entanto, a língua do povo, o tupi-guarani deles, é o caboverdiano, amplamente usado nas cantigas de roda, nas receitas de caruru e no comércio de morangos e lagostas. O caboverdiano ainda está em processo de normatização, e cogita-se elevá-lo ao estatuto de segunda língua oficial do país, ao lado do português.

Essa falta de normatização é visível na pronúncia e na estrutura do caboverdiano, que parece uma língua assim meio solta e misturada, como o catalão, uma língua que ficou para trás, que congelou. Quando Mayra Andrade canta que "tunuca parla que tem corage", ou que "é nós que embarca pa São Tomé", ou que "cadum com si mania, fá redondo virar quadrado", os lusófonos podem suspeitar: essa mulher está querendo dizer alguma coisa, que não é exatamente na minha língua, e como eu consigo entendê-la? Aí tem. Enquanto isso, os parisienses em bares cult aplaudem e aplaudem. Eles acham que estão gostando do francês bem falado dela, porque o ensino de inglês e francês é obrigatório nas escolas caboverdianas, mas eles estão impressionados mesmo, inconscientemente, é com a língua materna da cantora ter um pé lá no latim, por aproximação com o o português.

O que me leva para a seguinte hipótese: o catalão está para o espanhol como o caboverdiano está para o português.

P.S.: em uma de suas músicas, Mayra diz "dimokransia" (democracia), sendo que o título da canção é "Dimokrasa". Talvez eles conjuguem substantivos, como no alemão e no polonês. Mas aí já mistura demais.


Mayra Andrade em sua versão fatal. Caboverdiano, português, catalão, alemão e polonês em apenas 12 músicas. Imperdível.

Um comentário:

Lívia disse...

Interessantíssimo o post. Não sabia da existência do caboverdiano, muito menos dessa cantora (fui com a cara dela, hahaha). Acho geniais essas transformações da língua, e como quem constrói a identidade é o próprio povo, nas ruas, nos mercados, nas casas.