sábado, dezembro 01, 2007

Um mundo de homens e cães








Jane Rosenclent* aparece e logo indica as próprias vestes: "Desculpa aí, mas é que cuidar de cachorro...", lamenta-se, na voz rasgada pelo cigarro. Enérgica e desinibida, ela dispara palavrões à vontade. Quando recebe o tratamento de "senhora", diz que "senhora é a sua avó". Cumprimenta com satisfação as duas voluntárias que acabaram de chegar. Vera e Luzia Cavalcante, irmãs, voluntariam na Sociedade Humanitária Brasileira, uma ONG fundada em 1998 para cuidar de cães e gatos de rua. Trata-se, geralmente, de animais muito doentes, que vivem aos dissabores da própria sorte, ou animais que sofrem maus tratos dos donos. Quando descobertos pela organização, os animais são imediatamente levados a uma clínica, tratados, vacinados e limpos, e, depois, ficam disponíveis para adoção no abrigo central, em um terreno que fica a 30 km de Brasília, para os lados de São Sebastião. Para lá vão apenas os animais em estado mais grave, que ficam aos cuidados de Jane, dos caseiros e dos voluntários, que revezam as visitas ao local. Hoje, a organização é mantida arduamente pelo trabalho dedicado de seis voluntários, doações de rações, contribuições mensais de sócios e venda de produtos em eventos, além da parceria com veterinários. Parece muito, mas não é: principalmente em fim de ano, a organização sofre com sócios que viajam, param de contribuir e diminuem as arrecadações.


Visivelmente atordoada pela quantidade de trabalho, Jane enumera as tarefas que tem de fazer quase diariamente. Ela e os caseiros acordam cedíssimo, em torno de 5h da manhã, para limpar os canis, distribuídos pelo terreno acidentado e cheio de árvores. Depois, os cães são alimentados e recebem banho; quando necessário, são vacinados e vermifugados. O mesmo processo acontece com os gatos, que ficam na casa de Jane. Ao enumerar os trabalhos, ela se lembra das ocasiões em que um simples relapso pode causar a maior balbúrdia, como quando esqueceu o portão aberto, deixando entrarem cães da vizinhança. "Era no meio da madrugada", lembra, "e eu não ia acordar os caseiros. Se eles quisessem acordar, que acordassem. Foi a maior confusão, todos os meus cachorros correndo pra lá e pra cá, latindo e brigando uns com os outros". Ela também recorda a vez em que dois tatus, que moram ali perto, saíram de suas tocas à noite e invadiram o abrigo. "Aí, bicho, vou te contar: é foda. Vamos deixar bem no popular? É foda".


Naquela tarde de sábado, Vera (aposentada) e Luzia (funcionária do STJ, em Brasília), as voluntárias, trouxeram no carro duas cadelas. De raça indefinida ("poodle com qualquer coisa", arriscou Luzia), mas muito parecidas com shih-tzus ou lhasa apso, as cachorrinhas percorreram alegremente todo o terreno. Depois da morte do dono, passaram para a posse de uma mulher que as maltratava, deixando-as trancadas em um quarto e negando-lhes cuidados básicos, como ração, banho e vacina. Foram encontradas na Ceilândia, e as voluntárias só puderam localizá-las por causa de uma denúncia. Vera assinala que o cômodo das cadelas estava repleto de carrapatos. Na clínica, constatou-se que elas sofriam de anemia e que precisavam de um banho urgentemente (neste momento, Vera franze o nariz e lembra que estavam muito "fedidas"). Por se tratar de mãe e filhote, é preferível que sejam adotadas juntas. Depois de lacrimejar emocionadamente, vendo a felicidade das cadelas com o novo lar, Vera muniu-se dos pacotes de coloridíssimos biscoitos caninos e foi alimentar os cães. As cadelas ficaram à espera de água. Quando questionada sobre o nome das duas, Luzia, mancando por causa da perna engessada, responde que não sabe, mas que não darão outros nomes. "Elas já têm um nome, eu não vou dar outro. A gente vai descobrir os nomes de algum jeito, mas outros a gente não vai dar".


Os cães à espera de doação são distribuídos por tamanho dentro dos canis, que comportam no máximo três animais. Latem energicamente com a aproximação de qualquer pessoa, mas alguns são mais comportados. Nas portas dos canis, uma plaquinha indica o nome dos cachorros que estão lá dentro. Átila, o cão de guarda do abrigo, muito semelhante a um enorme fila marrom, mas com algumas nuances de labrador, é o que late mais alto, incessantemente. "Este não é para adoção", assegura Jane. Ao andar em direção aos canis mais próximos de sua casa, ela comenta o caso de Rose, uma cadela de raça indefinida, encontrada numa praça de Taguatinga. Acabara de dar à luz sete filhotes, que ainda não foram nomeados. Os caseiros observam que Rose é uma mãe ciumenta. Pelo jeito, ela terá de abandonar o ciúme, porque os filhotes, famintos e brincalhões, designam uma esperteza ímpar que os torna absolutamente atraentes. Quando soltos, brincam com vontade e dão mordidelas gentis uns nos outros, latem para os pés dos visitantes etc. Luzia empolga-se e comenta que são "muito lindos". Jane rebate imediatamente: "São todas meninas! Todas elas têm perereca, não tem ninguém com piupiu aqui!"


Quando todos se dirigem ao último conjunto de canis, onde ficam os maiores cães, aparece Zazá, uma cadela longilínea e de olhos puxados, traços quase asiáticos e um porte elegante, vigoroso. Perseguindo Jane com dedicação, ela responde fielmente aos comandos da dona e esquiva-se quando é energicamente reprimida. Mesmo assim, continua à espreita, cuidadosa ao se aproximar dos canis. Ao comentar sobre o estado lastimável em que muitos animais são encontrados, Jane acena para um cachorro cego, ao qual falta um olho. Ela também maldiz a doença dos carrapatos, que atinge o ápice no fim do ano e é um verdadeiro pesadelo. Todos os cães são acometidos pelos parasitas ao mesmo tempo, em abundância. Tratá-los exige paciência e cautela. "Eu não vou colocar qualquer veneno no cachorro; só aplico quando sei que realmente vai funcionar. Caso contrário, eu mato os carrapatos pessoalmente", explica. E acrescenta: "Gosto de pegá-los [os carrapatos] um por um e esmagá-los com o dedo. Podem dizer que espalha os ovos, não to nem aí: mato mesmo. É um prazer enorme". No canil vizinho, dois cães latem braviamente. "Sorri, Teca, sorri pra mamãe!", deleita-se Luzia, rindo e batendo palmas. O sorriso de Teca é um cômico arreganhar de dentes. Entre os outros cães daquele setor, estão Ada, o segundo cão de guarda do local, mas disponível para adoção; duas cadelas enfrentadoras, mas que se mostram medrosas quando alguém se aproxima demais, e Denis (foto), que late vigorosamente para o caseiro, mas que está pronto para ser adotado por um homem que mora nas redondezas.


Luzia aproveita a sorte de Denis para explicar o processo de adoção: quando uma pessoa manifesta interesse por algum animal, ela é convocada até o abrigo para escolher o cão ou o gato que mais lhe apetecem. Então, um ou dois voluntários visitam a casa da pessoa, para sondar as condições em que o bicho será adotado, e se o lar do interessado é adequado. Passados 30 dias depois da adoção, os voluntários voltam à casa, para verificar se o animal continua feliz e bem tratado. "Nós não vamos entregar um cachorro a alguém que não consiga cuidar dele. Tratar esses animais dá o maior trabalho. Não vamos doar um cão que tenha de voltar pra cá, todo doente, como foi encontrado primeiro. Começar tudo do zero? Não mesmo", resolve Luzia. Vera ressalta as dificuldades que acometem a organização, e que são necessários a divulgação e o trabalho de mais voluntários. "A gente precisa de ração, recursos financeiros, voluntários... e de alguém que divulgue nosso trabalho, claro", enumera sorrindo.

A depender da beleza dos animais para adoção e da saúde de que gozam, a organização não passaria por tantos problemas. Enquanto não surjam interessados, é provável que os voluntários continuem trabalhando incessantemente, para construir aquele belo mundo a que se poderia denominar de homens e cães.


*não ficou claro se o sobrenome de Jane é Rosenclent ou Rosenclair.

acesse o site da organização: www.shb.org.br


4 comentários:

Anônimo disse...

aiquelindo!!

Unknown disse...

Você devia escutar Pet Shop Mundo Cão, do Zeca Baleiro... (que inclusive, tá surgindo direto nos meus assuntos).

Unknown disse...

agora que eu vi que o texto tá justificado =)
muito bem.

Anônimo disse...

Parabéns pelo blog!!
conheça o site http://www.plugpet.com.br !
pra quem curte pets!