sexta-feira, abril 06, 2007

(Vi)ver [all I wanna do is... bycicle, bycicle)


Mamãe espalhava as jóias e os conjuntinhos no quarto arrumado e ia passear. O cômodo impregnado de perfume ficava levemente fora dos conformes, mas a fragrância tão maior não deixava transparecer as imperfeições da leve bagunça.
O sol nascia tímido e ia crescendo aos poucos, deixando o azul mais azul; pegava a bicicleta e percorria o mundo, as pessoas em fila comprando coisas, as velhas ricas fugindo da miséria que vinha de baixo a corroer o navio inteiro. Atravessava a tudo isto como uma seta sábia e rija que ia chegar ao outro mundo, mais com os limites dissolutos e por isso mais belo, mais vazio das aves ávidas que me vieram destruir.

E nadava com eles na água fria e nos beijos mornos de sábado. O rio olhava cúmplice e atento, desviado do entulho ao redor e sorrindo simpático à inocência que desflorava e não morria. Nascia em tais ocasiões, tanto como nos dias em que o barulho da música era alto e o ar cheirava inebriante, os braços dançavam pelo alto e tudo era muito, muito vazio de sentido; não havia por que encontrar razões.

Sustinha e guardava dentro a amizade que descobria com a maior das levezas da vida, experimentava o mundo novo e não cedia, não queria ver ruir o que era para sempre. Gritava as ordens confusas dos outros e distribuía armas secretas, mas com a intenção pouco animal de sentir a balbúrdia e a raiva vibrando na superfície da pele; era o momento único em que podia fugir para muito longe, protegido pela visão poderosa de criança, e desfrutar do viés novo com que pintava a situação.

Divulgava um universo mais saboroso que era possível e não queriam ver; que imensa agonia sentia das pessoas cegas e autocentradas!, que vida pouca levavam, e o planeta, tão maior, palpitando-lhes aos olhos, cheio de reentrâncias! E recebia em comunhão o brilho dos olhos alheios e dos dentes a sorrir, mas não das jóias de mamãe, agora bem pouco reluzentes.
Transitando entre as frestas proibidas, montava a bicicleta e ia viver, VIVER!, conhecia como ninguém o sabor renovador de sensações que, Deus, funcionavam. O chão era almofadado como nunca. O vento gostava de fazer cócegas no cabelo das mulheres e a relva fazia ver os grilos que cricrilavam. Algum olho de Deus, talvez o esquerdo, ou mesmo o direito, espiava atrás de uma nuvem grandiloqüente, cheia de si por ser quase divina, e sorria branca contra o fundo azul e estranhamente triste.

As crianças deixavam-se ser, a inocência era mais inocente e os dias nasciam com imenso frescor. E o pedalar ultrapassava a barreira imposta. E os conjuntinhos ainda cheiravam bons. E as pessoas permaneciam vivas na luta. E as faces gostavam de sorrir a todo mundo. E a luz resfolegou antes de a cortina cair por inteiro.

2 comentários:

Anônimo disse...

eu gosto desse, bem sorriso.

Anônimo disse...

how very lovely indeed!